- O Globo
Esse motim — postiço e orquestrado — está a serviço, sejamos objetivos, dos que pretendem, para além de derrubar o governo, botar em dúvida até mesmo a realização das eleições
O governo negociou mal. Cedeu mal. Entregou o que não tinha. Cedeu de novo — e pessimamente. Entregou o que não podia. Foi para muito além do limite do Tesouro. O governo — sejamos diretos — entregou-se. Não compreendeu a natureza do movimento criminoso. Não se negocia com quem o quer aterrar. O resultado era óbvio — esperado: enquanto a Petrobras aponta novamente para o buraco e o ajuste fiscal mergulhou na vala, a interdição do país permanecerá, e ganhará novos agentes. Pioramos. Muito. E o pior ainda virá. Não por falta de avisos. Apavorados, chantageados, Michel Temer e seus covardes deram a senha — fizeram o convite: vem que tem. Há subsídios para todo patriota de classe que bloquear estradas.
O povo apoia os rebeldes da própria causa, né? Ou — provoco — apoia qualquer insurreição contra políticos e governos? (O movimento criminoso, aliás, também é contra a atividade política; mas não se viu um só político tratar o troço pelo que é. Bando de frouxos, ou tirando casquinha ou acoelhados.) Não se engane, leitor. O povo entrou de gaiato. Apoia hoje. Será tarde quando não apoiar mais. Para isso servem as massas de manobra. Manobra de quem? A ação bandida que paralisou o Brasil articula interesses de grupos de pressão classistas — inclusive patronais — e de movimentos político-partidários infiltrados e influentes entre os caminhoneiros autônomos, miseráveis instrumentos na disputa eleitoral de poder, pelo controle narrativo da obstrução do país, que opõe bolsonaristas e esquerdistas.
O investimento no caos é asqueroso e evidente: quer-se sequestrar o país, inviabilizar a administração pública e, se possível, derrubar o governo. O irmão caminhoneiro Janot já mostrara o caminho. A pauta do preço do combustível é secundária. O ímpeto está em fomentar a desordem — a anarquia. Tanto quanto óbvio é quem afinal vencerá — a história ensina — uma batalha que instrumentaliza o trabalhador. Não terá sido por falta de aviso.
O lulopetismo, profissional da interdição, já farejou a carniça de oportunidades. Como não se pode classificar os petroleiros de bolsonaristas, a greve anunciada pelo setor não deixa dúvida do que está por vir e de quem assumirá o controle — e o capital político — da barbárie contra o Brasil. A paralisação criminosa a que aderiu a direita cortadora de cabeças, pensando em amealhar votos para o mito em sua versão Chicago Boy, é um convite à impostura e um afago na ideia de Estado centralizador. Ou não teremos ouvido, nos últimos dias, Dilma Rousseff bradar que seu governo não apenas não pilhou e quebrou a Petrobras como tinha o modelo de gestão correto para a companhia?
Essa crise é artificial. Tem agenda — e não é a redução do valor do diesel nem a conquista de melhores condições de trabalho para os caminhoneiros. Os frustrados do “Fora, Temer” tentam faturar a brecha. O caminhoneiro fundador Janot já indicara a trilha. Pela desestabilização nacional, abraçam-se — carta branca ao capeta — os que querem intervenção militar e os que desejam Lula livre. Esse motim — postiço e orquestrado — está a serviço, sejamos objetivos, dos que pretendem, para além de derrubar o governo, botar em dúvida até mesmo a realização das eleições. Pode-se até considerar essa pauta boa. Mas que se a assuma. Melhor a irresponsabilidade e o oportunismo transparentes do que a desonestidade intelectual.
Babaquice fundamental a ser derrubada, pois, é esta segundo a qual o movimento bandido — exclusivamente corporativista — que bloqueou o país encarnaria amplos valores liberais e representaria um marco patriótico, um divisor de águas, na tomada de posição do trabalhador contra a opressão do Estado onipresente. Que uma jornada de vícios estatizantes e classistas como essa que interditou o Brasil, ademais armada em ano eleitoral, seja vendida (e comprada) como conjunto orgânico de insatisfações capaz de mobilizar, de fazer emergir, a partir da consciência individual de caminhoneiros grevistas, uma revolução — nacionalista e de corte liberal — tributária no país é mistificação só possível numa sociedade que renunciou por completo a refletir e se enxergar.
Não importa, pois, a tunga do mundo real: que o governo, para além de anunciar que bancará o fim do PIS/Cofins e da Cide, tenha arriado as calças da responsabilidade para distribuir concessões que beneficiarão exclusivamente uma categoria, mas cuja conta será paga por todos. O liberalismo de beira de estrada, encarnado pelos patriotas de classe, e percebido e incensado pelos sensíveis intelectuais do jacobinismo de para-choque, outra vitória não merecia senão, por exemplo, a reserva de 30% dos fretes da Conab — uma estatal de abastecimento — para caminhoneiros autônomos, sem licitação. Parabéns.
Invista no caos e colha mais Estado. Invista no caos e revitalize — novamente — o lulismo. Invista no caos e eleja a esquerda. Parabéns.
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Carlos Andreazza é editor de livros
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