Contrário à conspiração que derrubou Jango, tenente-coronel foi assassinado em Canoas (RS)
Rubens Valente / Folha de S. Paulo
BRASÍLIA - Morto a tiros quatro dias depois do golpe militar iniciado em 31 de março de 1964, que completa 55 anos no domingo (31), o tenente-coronel da Aeronáutica Alfeu de Alcântara Monteiro é considerado a primeira pessoa a ser assassinada pela ditadura militar.
Foi necessário mais de meio século para que a Justiça Federal reconhecesse, a partir de ação movida pelo Ministério Público Federal e ativistas de direitos humanos, que Monteiro não foi morto em legítima defesa, ao contrário do que dizia a versão oficial.
Na semana passada, o Ministério Público informou que a União fez mudanças em documentos oficiais para constar que Monteiro foi assassinado dentro do quartel.
Em sua decisão, o juiz federal Fabio Hassen Ismael escreveu que Monteiro morreu em "um ato de exceção" em "contexto de violação a direitos humanos, por motivações político-ideológicas decorrentes do regime militar instaurado".
Nascido em 1922 em Itaqui (RS), em um 31 de março, Monteiro entrou na Escola da Aeronáutica em 1942.
Atuou em Fortaleza, São Paulo, Rio, Natal e Canoas (RS). Tornou-se tenente-aviador em 1946 e fez o curso do Estado-Maior da Aeronáutica em 1958.
No final de março de 1964, por coincidência, Monteiro providenciava sua mudança de Canoas para o Rio, onde frequentaria um curso superior de comando na Escola do Estado-Maior da Aeronáutica, quando veio a derrocada do presidente João Goulart.
Monteiro não era bem visto pelo lado golpista porque, em 1961, segundo testemunhas, havia se recusado a participar do bombardeio do Palácio Piratini, em Porto Alegre (RS), onde o então governador Leonel Brizola organizava uma resistência para garantir a posse de Goulart, então vice-presidente, após a renúncia de Jânio Quadros.
Quando a crise acabou, com a posse de Goulart, o lado defendido por Monteiro saiu vitorioso, mas isso durou menos de três anos.
Na noite de 4 de abril de 1964, Monteiro foi chamado ao gabinete do novo comandante do Quartel-General da 5ª Zona Aérea em Canoas, o brigadeiro Nélson Freire Lavanere-Wanderley, que havia chegado naquele dia como interventor do grupo golpista e dado voz de prisão a vários militares.
O brigadeiro estava acompanhado do coronel Roberto Hipólito da Costa, sobrinho do novo presidente da ditadura, Humberto de Alencar Castello Branco. Minutos depois de se apresentar, Monteiro foi assassinado na sala do comandante.
No inquérito controlado pela Aeronáutica, tanto Wanderley quanto Costa afirmaram que Monteiro recusou a prisão, por entendê-la um ato arbitrário, sacou um revólver calibre 32 e, no meio de uma áspera discussão, disparou contra Wanderley, atingindo-o de raspão no rosto e no ombro esquerdo.
Em seguida, Costa, que viu a cena, sacou uma pistola e deu vários tiros em Monteiro.
Em seu livro "Castello - A Marcha para a Ditadura" (ed. Contexto, 2004), o jornalista Lira Neto escreveu que Castello agiu para abafar o episódio, conseguindo que seu sobrinho fosse transferido para uma longa missão nos EUA e empossando, dias depois, Wanderley como ministro da Aeronáutica.
Ao longo de anos, prevaleceu a versão oficial de uma resistência à prisão. Essa visão só começou a mudar a partir dos anos 2000, quando o Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul (MJDH) coletou documentos e testemunhos e solicitou que o Ministério Público Federal reavaliasse o caso.
No decorrer da apuração, militares que estavam na base no dia do crime disseram que Monteiro foi abatido antes de disparar contra Wanderley.
Exames de corpo de delito e uma perícia da Polícia Federal levantaram a hipótese de que os dois tiros contra Wanderley partiram de baixo para cima, o que indica que Monteiro atirou depois de ser atingido por Costa.
Em sua decisão, o juiz federal concluiu que a apuração demonstrou ser "provável que a vítima não estivesse empunhando sua arma no instante em que foi atingido" e, assim, "pode-se concluir que o coronel Alfeu não tomou a iniciativa de efetuar disparos contra o seu comandante".
Ele também mandou o cartório reescrever o atestado de óbito de Monteiro nos seguintes termos: "Morte violenta. Hemorragia interna consecutiva a ferimentos de vísceras abdominais causados por disparos de arma de fogo".
Antes, o atestado dizia apenas que ele morrera de hemorragia interna, sem citar os tiros. Monteiro recebeu quatro projéteis que atravessaram seu rim, fígado, pâncreas e intestino.
"Monteiro não era de esquerda, era um legalista. Tinha simpatia pelo [então governador] Leonel Brizola, nada além disso. Esse é um exemplo de que havia, na época do golpe, uma ala nas Forças Armadas que queria só o cumprimento da Constituição, ou seja, João Goulart não poderia ter sido derrubado daquela forma", disse Jair Krischke, do Movimento Justiça e Direitos Humanos.
"O Monteiro ficou marcado dentro da Aeronáutica por causa do seu comportamento na crise de 1961. Era contra o bombardeio. Ele dizia: 'O que vocês querem fazer é um golpe'", afirmou Krischke.
Um dos procuradores da República que atuou no caso em Canoas, Ivan Cláudio Marx, hoje lotado na Procuradoria do Distrito Federal, disse que a decisão da Justiça "é um reconhecimento estatal importante, ainda que depois de tanto tempo".
Segundo ele, "a apuração revelou a falsidade da versão oficial. Ou seja, ele foi mesmo executado. Os agentes da ditadura forjaram suicídios, nesse caso forjaram uma suposta legítima defesa".
Em 1996, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, vinculada ao Ministério da Justiça, deferiu o pedido de reconhecimento da culpa do Estado na morte de Alfeu Monteiro.
O membro da comissão que na época representava as Forças Armadas, general Oswaldo Pereira Gomes, pediu a revogação da medida sob o argumento de que o inquérito policial-militar apontou que Monteiro "foi morto no ato de atentar contra a vida de seu superior hierárquico" e com "o ato criminoso acertou com tiro de arma de fogo a cabeça e o omoplata do major".
O voto do general Gomes acabou derrotado pela maioria da comissão.
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