- O Globo
No final dos anos 1970, “Xica da Silva”, filme voltado a uma revisão de nosso passado histórico, anunciava também valores que deviam nos conduzir a uma nova democracia, depois da ditadura sob a qual ainda vivíamos, embora seu fim já estivesse no horizonte. O que o filme queria dizer era simples — se íamos viver um novo momento em nossa história, era preciso vivê-lo com valores novos, trazendo para o público o que era desejável no privado. Era preciso superar a melancolia, enterrar a tristeza de ideias revolucionárias que não levavam em conta nossos desejos e nosso prazer de viver, nossa vontade e nosso direito de ser feliz.
O filme foi esculhambado por revolucionários bem comportados, uma esquerda que começava a entrar em decadência no mundo inteiro, graças ao fim do mito soviético, aos movimentos identitários que pipocavam por aí, aos heróis do que chamávamos então de contracultura. Na defesa de “Xica da Silva”, valeu demais a solidariedade de cineastas como Glauber Rocha, o apoio expresso publicamente por artistas como Chico Buarque e Caetano Veloso, os textos de ensaístas de respeito como Roberto DaMatta.
Mas o que nos garantiu que o filme estava certo foi a reação do público. Nunca me esquecerei da festa improvisada pelos espectadores, na estreia de “Xica da Silva” no Cine Madureira. Depois de risos e aplausos, comentários oportunos e divertidos durante a projeção, assim que entraram os créditos finais, os espectadores se levantaram de suas cadeiras e se puseram a dançar pelos corredores da sala, ao som de Jorge Ben, com palavras de ordem inesperadas e muito bem-vindas. A cena se repetiu pelo país afora, ao longo dos muitos meses em cartaz e dos cerca de quatro milhões de pessoas que viram o filme. Era aquele o Brasil em que acreditávamos, era naquilo que queríamos transformar o futuro do país.
Nada disso impediu que os mal-humorados, perdidos em teorias livrescas, mesmo quando bem-intencionados, condenassem o filme como uma heresia, uma negação da seriedade estéril com que prefiguravam nossa Revolução com maiúscula. Era como se fossem os policiais que vigiam as estradas, patrulhas a impedir que os automóveis corram mais do que devem, em benefício da ordem e da disciplina do que está previsto nos códigos. Numa entrevista ao “Estado de S. Paulo ”, chamei-os, meio de brincadeira, de “patrulha ideológica ”. A piada pegou e dura até hoje.
Coma democratização eoartigo5º da Constituição de 1988, que nosso atual presidente jurou respeitar, achei que acultura brasileira nunca mais sofreria de novo aquele pesadelo contra a imaginação criadora. Mas, hoje, estamos ameaçados pelo próprio poder público. Um poder público que, por ter sido eleito e não imposto pelas armas, devias ermais respeitoso coma população. Tanto com os que não votaram nele, quanto com os que o elegeram e não estavam pensando nesse tipo de comportamento.
Para disfarçar a guerra ideológica sectária que o governo proclamado de direita instala no país, as autoridades não se referem nunca a ideologias quando condenam manifestações daqueles com os quais não concordam. Mas em “viés ideológico”.
Todo ser humano, por mais descomprometido que se pretenda, adota ideias que, uma vez somadas, geram uma ideologia. Mesmo um louco no hospício ou um bêbado num balcão de bar terão sempre uma ideologia presente em seus discursos, por mais sem sentido que eles pareçam ser. Qualquer manifestação humana se funda numa ideologia do que é manifestado, o “viés ideológico” sendo apenas um termo que pode servir para desqualificar quem usa certas expressões como “gênero” ou coisa que o valha. A direita no poder está criando uma nova restrição à produção, uma ação autoritária para impedir a existência daquilo que o poder público julga inconveniente. Isso não é apenas um “viés”, mas a própria ideologia de seu discurso.
O cinema brasileiro não é financiado pelo orçamento do Estado. Os recursos que permitem a existência de nossos filmes vêm da Condecine, taxa criada pelo ministro Reis Velloso e tornada lei pelo presidente Ernesto Geisel em 1975, cobrada de todo e qualquer produto audiovisual consumido no Brasil. O Estado deve apenas organizar o fomento, regular e fiscalizar o uso desses recursos que vêm da própria atividade e que são devolvidos por ela ao Estado na forma de renda, impostos e taxações, em valores quatro ou cinco vezes superiores ao que recebe.
Nenhum presidente, em nenhum país democrático do mundo, pode se arvorar em proprietário daquilo que o Estado produz ou ajuda a produzir, determinando o que deve e o que não deve ser produzido. O respeito que o Estado deve às famílias está na proteção da censura indicativa, quando os potenciais espectadores são alertados sobre o conteúdo de cada filme. Basta à família não ir ver o que não lhe interessa. O resto é patrulha de viés ideológico, que deve ocupar e divertir o poder.
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