- O Globo
Às pressas, no improviso, Jair Bolsonaro anunciou a criação de um partido. Essa celeridade tocada nas coxas me mobilizou o ceticismo. Talvez aquele movimento repentino tivesse por impulso antecipador alguma informação privilegiada — quem sabe algum novo (ou velho) escândalo laranja ainda desconhecido na planície? O presidente sempre se mostrou muito hábil, frio, na arte de se desvincular. É um mestre da instrumentalização e do descarte.
Aí está, pois, a Aliança pelo Brasil, por ora modesta carta de intenções (para lavar imagens), a ser um teto para abrigar o bolsonarismo raiz — segundo se divulgou, uma legenda forte, orgânica, programática. Será? Que Bolsonaro monte um partido, vá lá. Precisará mesmo de um para si e sua corte. Que seja um com vida, com dinâmica, duvido. Minha desconfiança tem lastro nos fatos, na história.
Ele já esteve em quase dezena de partidos. Em cerca de 30 anos de vida pública, nunca se envolveu com qualquer deles. Nunca. Ao contrário: sempre cultivou o distanciamento do sistema partidário como, em consonância com o espírito do tempo, chancela de pureza e ativo eleitoral —argumento antipolítico influente que compôs um dos pilares de seu sucesso em 2018. Afinal, o homem não se misturava. Não era essa a propaganda constitutiva do mito? Assim, no curso dessas três décadas, sem exceção, o atual presidente, tapando o nariz, tratou (e trocou de) partido — não importa qual — como mero mecanismo formal, uma exigência burocrática para se disputar eleição.
Não foi diferente na relação com o PSL. Lembremos. Bolsonaro, por meio de Gustavo Bebianno, alugou o partido de Luciano Bivar. Teria, sob seu absoluto controle durante o processo eleitoral, a base de que precisava para competir; pela qual, porém, jamais empreenderia o mais mínimo esforço de qualificação. E devolveria um partido com bancada parruda e, portanto, dinheiro na conta. Business. Em termos de caráter, o PSL sai do acordo como entrou: sem.
Sem surpresas. Fosse diferente, tivesse o bolsonarismo investido em dotar o partido de qualquer identidade, seria contraditório; seria inconsistente com a natureza do fenômeno personalista e autocrático que alavanca Bolsonaro. O aluguel do PSL e seu despejo encarnam o auge expressivo da campanha bolsonarista de desinstitucionalização: uma bem-sucedida propaganda cuja síntese seria “partido político é desnecessário”; ou, mais precisamente, “intermediário prescindível quando se tem um líder capaz de falar diretamente ao povo”.
Por que um autoritário como Bolsonaro, com rico passado antipartidário, depois de chegar ao topo da cadeia de poder, sentado no lugar ideal para decretar, dedicar-se-ia a implementar um partido forte, movimento descentralizador que seria o avesso perfeito do conjunto de esforços personalistas que o trouxe até aqui?
A conta não fecha. Há — para manter insolúvel a equação — uma questão irrespondível: por que alguém que julga nunca haver precisado de partido para prosperar de repente avaliaria ser necessário levantar um, um verdadeiro, e justo no momento em que é o próprio presidente da República eleito, e eleito via partido de aluguel?
Está no preâmbulo do manual do autocrata: partido forte é entrave a qualquer projeto de poder autoritário. Sendo símbolo pujante da democracia representativa, campo fundamental ao exercício da atividade política, partido é estrutura a esvaziar. De modo que não faz, jamais fez, sentido apostar em que o bolsonarismo — agente hostil aos princípios da democracia liberal, que se alimenta da criminalização da atividade política, da depredação de qualquer cultura institucional e do aterramento do valor da impessoalidade —se vá lançar à construção de um partido senão um desprovido de substância, como o PSL. Nisto eu acredito. Num novo PSL, sem Bivar, para Bolsonaro e filhos chamarem de seu.
Partido político é ferramenta — sejamos óbvios — para a atividade política, o que pressupõe a formação de lideranças. Então, repito a pergunta: será que um líder populista como Bolsonaro, cujo personalismo é de linhagem familista, agora que alcançou o centro do poder, com força sem precedentes para desdobrar seu programa autocrático, investiria verdadeiramente na criação de um partido orgânico, o que significaria fomentar o surgimento de novos líderes (sem vínculos sanguíneos), o que resultaria em debate partidário e em legítima concorrência interna?
Ou: sendo quem é, tendo o passado que tem, estando onde está, ergueria uma espécie de antipartido, fechado, de fachada, apenas para acomodar formalmente (e bancar largamente) seu projeto autocrático familiar?
O Partido da Família vem aí.
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