No Dia Internacional dos Direitos Humanos, ex-ministro da Justiça avalia que situação no Brasil é a pior desde a redemocratização
Paula Ferreira | O Globo
BRASÍLIA - Criada em fevereiro deste ano, a Comissão Arns tem sido uma das principais organizações à frente da defesa dos direitos humanos no Brasil. Em entrevista ao GLOBO, o presidente do grupo e ex-ministro da Justiça, José Carlos Dias, afirma que o governo Bolsonaro promove um "combate aos direitos humanos". Aos 80 anos, ele diz que desde a redemocratização nenhum outro presidente adotou postura tão sistemática contra a área como Bolsonaro. A entidade, inclusive, já o denunciou ao Tribunal Penal Internacional por incitação a genocídio indígena .
Para Dias, o descaso com os direitos humanos também acontece a nível estadual e outros poderes da República não têm sido eficientes na garantia e defesa desses direitos fundamentais. Segundo ele, as violações acontecem em vários âmbitos e vão desde a tortura à censura e ao desrespeito à imprensa. Dias argumenta que os defensores dos direitos humanos precisam ocupar espaço também nas redes sociais para reduzir o impacto dos discursos de ódio propagados, sobretudo, por meio de notícias falsas.
O ex-ministro, que tem mandato na comissão até 2021, condenou a apologia a atos autoritários, como as declarações de pessoas ligadas ao governo sobre o AI-5, e defendeu que o governo desenvolva políticas eficazes, principalmente na área social, garantindo o direito à aprendizagem e ao saneamento básico.
Ao longo de 2019, a Comissão emitiu 11 notas públicas a respeito de violações de direitos humanos no país e em defesa de instituições. Nesse período, o grupo atuou em pelo menos 24 casos em defesa dos direitos humanos, entre eles, a execução de 15 pessoas no morro do Fallet, no Rio de Janeiro; contra mudanças previstas no pacote anticrime do ministro Sergio Moro ; e contra o contingenciamento promovido pelo governo nas universidades públicas. Além de pelo menos sete representações e denúncias, uma delas contra o decreto de extinção do Mecanismo Combate e Prevenção à Tortura. As ações integram uma minuta que servirá como base para o relatório que será lançado em fevereiro de 2020, com o balanço dos trabalhos da Comissão.
• Qual é a sua avaliação sobre o atual cenário de direitos humanos no Brasil?
Foi um ano muito difícil para o Brasil, muito penoso pelas violências praticadas em várias áreas. O discurso de ódio foi dirigido pelo presidente da República, estabelecendo em vários ministérios focos de preconceitos e de ataques infundados contra bandeiras de direitos humanos. Em termos de violações de direitos humanos, no caso ambiental, por exemplo, é uma barbaridade; o campo da cultura; da manifestação de pensamento através da imprensa; tudo isso foi atingido pela ação do governo.
• O que levou a comissão a fazer representação contra o presidente no Tribunal Internacional?
Entendemos que internamente não teríamos como levar a julgamento a pessoa do Jair Bolsonaro, ao passo que o Tribunal Penal Internacional é uma corte que se destina justamente a julgamento de pessoas que praticam atos de violações aos direitos humanos. Encontramos esse caminho importante, porque afinal de contas a política anti-indigenista do governo está determinada a dizimar as populações indígenas, então entramos com a ação contra isso especificamente. Isso não é rápido, é demorado, mas eles vão ouvir pessoas, testemunhas, a procuradora pode vir ao Brasil e tomar as providências convenientes para apurar as denúncias feitas por nós.
• Há um discurso institucional antidireitos humanos?
Há uma política de combate aos direitos humanos. Tivemos isso no período da ditadura, mas durante o período democrático nenhum dos presidentes adotou uma política tão sistemática de combate aos direitos humanos como o governo Bolsonaro. Eu gostaria de ter esperanças, mas não estou achando fácil cultivá-la.
• As instituições brasileiras estão operando satisfatoriamente para coibir as violações aos direitos humanos?
Aquém do necessário. O governo impede o desenvolvimento de instituições fundamentais, por exemplo, demitindo membros de conselhos, atuando de forma absurda em presídios. A censura e o trabalho desenvolvido contra a imprensa livre é algo que nos dá muito medo de que o Brasil descambe para o regime autoritário de forma declarada.
• Os outros poderes estão cumprindo seu papel?
Nenhum dos poderes está muito bem. O Poder Legislativo está até surpreendendo em certas coisas, a Reforma da Previdência não saiu como a gente desejava, mas saiu. Tem algumas posições em termos de defesa dos direitos humanos, como o pacote do Moro, que não foi aceito integralmente como o ministro queria. O Supremo Tribunal Federal está dividido, há momentos em que assume uma postura corajosa e há momentos em que recua e se torna absolutamente permissivo com discurso de ódio do governo federal.
• Recentemente, pessoas ligadas ao governo fizeram afirmações sobre a instituição de um “novo AI-5”. Qual é a sua opinião?
O AI-5 foi o momento mais doloroso da História do Brasil. Dentro da ditadura, foi o golpe dentro do golpe. Em nenhum momento, durante toda a ditadura Vargas e de 1964 nunca houve um momento tão duro e horroroso como AI-5, que provocou mortes, desaparecimento de pessoas. Lembrar do AI-5 neste momento é algo que arrepia. Eu como advogado e defensor de perseguidos políticos sei o que o AI-5 significou em termos de incentivo à tortura, à morte e a violências contra direitos individuais.
• Há alguns anos era impensável a defesa aberta da ditadura militar. O que levou a essa radicalização?
É difícil, não saberia dizer. Fico muito impressionado quando vejo como as redes sociais têm sido utilizadas para difundir o discurso de ódio, isso me preocupa muito. Antes, os debates eram feitos de forma absolutamente aberta em televisão, rádio, jornais, comícios, e assim o povo ia formando sua opinião para que pudesse votar. Agora isso é destilado diariamente por meio de fake news e de outras maneiras de incentivar o discurso de ódio. É importante que esse debate aconteça em todos os campos e que nas redes sociais também seja transmitido o discurso em defesa dos direitos humanos, por esse motivo criamos a Comissão Arns. Temos que utilizar todas as formas de comunicação para difundir ideia dos direitos humanos.
• Quais os planos da comissão para o próximo ano? Há alguma área específica em que pretendem focar?
Temos que enfrentar o cotidiano, e o cotidiano não somos nós que criamos, temos que pregar a coerência com os ideais democráticos, a defesa dos direitos humanos. Os fatos estão acontecendo, veja o caso de Paraisópolis ( onde nove pessoas foram mortas em ação policial, no início deste mês ), temos que estar presentes e reagir. No Pará, o desastre ambiental, o ataque aos índios. Isso vai exigindo de nós um combate sistêmico em todas as frentes em que houve violações aos direitos humanos de forma forte e violenta.
• O senhor mencionou o caso de Paraisópolis, que foi fruto de uma ação da Polícia Militar, que está sob o jugo do estado. A postura relapsa em relação aos direitos humanos existe a nível estadual?
Acho que sim, principalmente no Rio de Janeiro. O Estado do Rio é onde existe mais violência contra os direitos humanos. Em São Paulo também há, mas em São Paulo não é tão grave, porque de qualquer forma o governador ( João Doria ) recuou de seu discurso inicial sobre Paraisópolis. Temos que pressionar. Tive uma longa audiência com o secretário de Justiça de São Paulo, e pedi que conversasse com o governador sobre a violência que aconteceu em Paraisópolis. No Rio, estivemos com o Procurador Geral de Justiça e com o Defensor Geral, com o governador ( Wilson Witzel ) não, mas é possível que a gente peça uma audiência com ele. A política de segurança do Rio é terrível, violentíssima. A ordem é abater criminosos.
• No Rio também há o caso Marielle, que está sem solução. O que isso representa em termos de direitos humanos?
É um absurdo que até agora não se tenha solucionado. Esperamos que se encontre o caminho da descoberta de tudo o que rodeia a morte da Marielle. Não tenho dados específicos, mas está havendo muita lerdeza na apuração dos fatos. A punição ao Estado brasileiro pela falta de solução desse crime é um caso a ser pensado.
• Como avalia a atuação do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos?
Não vejo absolutamente nenhuma preocupação de a pasta ser protagonista da nossa luta pelos direitos humanos, ao contrário. Acho que a palavra direitos humanos está sendo mal usada. A política do governo está péssima.
• Há algo de positivo na atuação do ministério?
Eu não vejo.
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