- O Estado de S.Paulo
Em 2019 o presidente moveu sua guerra suja contra o jornalismo. Como será 2020?
Entre os balanços negativos que o governo federal deixa em 2019, não nos esqueçamos da campanha estridente para desmoralizar a imprensa. Poucas vezes um presidente da República se empenhou tanto em difamar as redações profissionais. Segundo levantamento da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), a autoridade máxima do Poder Executivo alcançou, entre 1.º de janeiro e 30 de novembro de 2019, a marca de 111 ataques à imprensa. A campanha infamante cravou a média de um insulto a cada três dias.
No cômputo da Fenaj aparecem episódios da mais tosca brutalidade verbal. Mesmo quem não gosta de jornalismo se sente vexado. Num post de 9 de agosto, por exemplo, o presidente reclamou da ausência de punição contra “excessos” dos jornalistas. Além de mal-educado, o chilique é desinformado, pois todas as legislações democráticas, desde a histórica Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, na França, preveem a responsabilização dos que abusam da liberdade de expressão (está lá, no artigo 11 da declaração).
Naquele mesmo dia 9 de agosto, no Palácio do Alvorada, ao lado do ministro da Justiça, o presidente permitiu-se uma agressão suplementar (essa, aliás, nem consta do rol organizado pela Fenaj). Dirigindo-se a um grupo de repórteres, fez uso de sua rispidez habitual: “Se excesso jornalístico desse cadeia, todos vocês estariam presos agora, tá certo?”.
O que vem a ser “excesso jornalístico”? Ninguém sabe. A lei conhece a figura do abuso de um direito, assim como conhece o abuso de poder, mas não estabelece nada sobre “excesso jornalístico”. Nem teria como estabelecer. A locução adjetiva carece de objeto. É só na escuridão das fantasias tanáticas do sujeito que a pronuncia que ela ganha sentido: para esse sujeito, o jornalismo não passa de um impulso desagradável (como a raiva, como as explosões de mau humor), é uma forma de demência que precisa ser vigiada e contida. No léxico presidencial, o jornalismo não é profissão ou função social, mas uma neurose que acomete indivíduos desviantes. Por isso o presidente, que nunca diria “excesso advocatício”, “excesso médico” ou “excesso arquitetônico”, sai por aí falando em “excesso jornalístico”. Para ele, o jornalismo encerraria uma disfunção tóxica. Em doses moderadas, já faz um mal danado. Em “excesso”, deveria dar cadeia.
Excessos à parte, não há muito a fazer quanto ao despreparo do governante de turno. Temos de conviver com isso. Cumpre-nos, isso sim, entender sua lógica ilógica. Se seus discursos desinformam os brasileiros e deformam as linhas de equilíbrio da opinião pública, o que nos cabe, dentro de todos os limites, é escrever para esclarecer, mesmo que em vão. A gente pode (e deve) perguntar: o que pretende essa caótica retórica que atira randomicamente contra repórteres, órgãos de imprensa (que ele ocasionalmente chama de “inimigos”) e quem mais estiver na frente? Seria sua finalidade quebrar um jornal especificamente ou caluniar este ou aquele profissional de forma seletiva?
A resposta é “não”. O propósito dos 111 ataques em 11 meses é quebrar a vigência da liberdade de imprensa. O presidente parece saber, mesmo sem saber como sabe, que sem liberdade de imprensa a sociedade estará entregue às mentiras e, de modo especial, às piores mentiras, as que são enunciadas pelo poder. Ele quer menos liberdade para os jornalistas checarem os fatos porque – ao menos é o que parece – quer mais espaço para mentir.
Inconscientemente coerente com seu propósito pulsional, ele esconde que a liberdade de imprensa, mais do que uma prerrogativa burocrática do profissional, é um direito de toda a sociedade. Fala como se a liberdade de imprensa fosse a “exclusão de ilicitude” dos jornalistas. Nada mais mentiroso. O jornalista é, sim, quem em primeiro lugar exerce a liberdade de imprensa, mas o jornalista não é o beneficiário da liberdade de imprensa. O beneficiário é a sociedade. O jornalista exerce a liberdade como um dever e, agindo assim, assegura que a sociedade possa desfrutar a liberdade de imprensa como um direito. Se não pudesse contar com o direito à liberdade de imprensa, a sociedade não teria como se proteger contra as inverdades que aparecem na propaganda do poder. Ficaria indefesa.
Contra tudo isso o discurso presidencial convida a sociedade a repudiar a imprensa. Culpa os jornalistas por todos os relatos inverídicos que circulam, caracteriza os repórteres e os articulistas como vilões e, por meio desses artifícios, procura angariar apoio para, intimidando os jornalistas, esvaziar esse direito essencial de toda a sociedade.
Um jornal sozinho não entrega a verdade de mão beijada a ninguém, sabemos disso. Mas, repetindo, uma sociedade com órgãos de imprensa sérios, profissionais e independentes está mais protegida contra fraudes e estratégias de tapeação. A melhor forma de entendermos a liberdade de imprensa é concebê-la como um regime geral para o fluxo das ideias na sociedade democrática. A liberdade de imprensa é o princípio norteador do regramento que autoriza os jornalistas a verificarem diariamente os indícios da verdade factual e assim realizar um trabalho que, se não encontra a verdade pronta e acabada, impõe limites decisivos contra as propagandas do poder.
Se cumprirem seu dever de exercer a liberdade, os órgãos de imprensa ajudam a sociedade a se proteger contra os mentirosos que tentam primeiro tapeá-la para depois oprimi-la. Será por isso que o presidente está em campanha contra a liberdade? Talvez.
Fiquemos com os fatos. Quando ataca pessoalmente uma repórter do Estado, quando tenta afastar ilegalmente a Folha de S.Paulo de uma licitação, quanto chama a Rede Globo de “inimiga”, o chefe de Estado não quer apenas ofender o Estado, a Folha ou a Globo. Ele quer ferir o regime da liberdade de imprensa. Por isso em 2019 moveu sua guerra suja contra a imprensa. Como será 2020?
*Jornalista, é professor da ECA-USP
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