Cabo
Kassio e soldado Toffoli fazem amor com o presidente por telepatia
A
urgência do STF do presente não é mais decidir casos conforme critério
transparente e previsível de prioridade. O STF tem urgência em
sobreviver como instituição relevante.
Submetidos
a assédio permanente, em público e nos porões, de presidente da República que
comete crimes comuns e de responsabilidade em série, ministros não dispõem
de equipamentos potentes de autodefesa.
Um
inquérito heterodoxo foi tudo o que puderam tirar da cartola. Não bastassem
inimigos externos, apoiados pelo gangsterismo militar e falanges robotizadas,
o STF
tem que neutralizar inimigos internos, seus cabos e soldados íntimos.
Agora,
agora e mais agora? Essa pergunta dá título a um dos grandes podcasts da
pandemia, narrado pelo historiador Rui Tavares. Ele relata “histórias da
história”, episódios do último milênio em que pessoas viviam um presente tomado
por fanatismo, ódio e intolerância.
“Agora, agora e mais agora” serve também para
expressar o senso de urgência em grau máximo que deveria nortear o
comportamento do tribunal diante do precipício. Mais do mesmo deixará o STF ao
sabor do acaso. Manter a liturgia da normalidade não disfarça mais nada. Melhor
perceber o que o enfraquece e investir no que lhe dá força.
A característica determinante da fragilidade do tribunal está na constatação de que o “STF”, como instituição colegiada, quase não existe. O que chamamos de STF, boa parte do tempo, não passa de um agregado lotérico de ações ou omissões individuais. Isso fragiliza o tribunal não só pela irracionalidade burocrática, mas pela excessiva personalização de cada gesto.
O
tribunal é cobrado não por obediência a precedente, à jurisprudência ou a
argumento constitucional qualquer, mas pelas afinidades de Luís
Roberto Barroso, Gilmar Mendes, Rosa Weber, Cármen Lúcia etc. Cada decisão
ganha uma cara, um temperamento, um endereço privado.
Tribunais
não precisam funcionar assim. Converter as partes num todo, ou 11 ministros num
STF, é mágica institucional decisiva para a reputação e a autoridade de um
tribunal. Mais do que qualquer outra instituição democrática, um tribunal deve
adotar métodos que façam o todo ser mais respeitável que as partes e também a
soma das partes.
Registros
da história do heroísmo judicial destacam juízes que conseguiram liderar
colegiados em situações de risco, imprevisibilidade e mudança. Nunca o que
fizeram sozinhos.
Os
exemplos clássicos de John Marshall e Earl Warren da Suprema Corte americana
não são maiores do que as experiências de Aharon Barak, na Suprema Corte
israelense, de Carlos Gaviria, na Corte Constitucional colombiana, de Albie
Sachs e Arthur Chaskalson, da Corte Constitucional sul-africana, de Rosalie
Abella na Suprema Corte canadense.
Tampouco
são maiores do que Pedro Lessa, Victor Nunes Leal e Sepúlveda Pertence na
história do STF, ou mesmo Ribeiro da Costa, que teria prometido fechar o
tribunal e entregar a chave ao ditador Castelo Branco se decisão do STF não
fosse cumprida.
Há
reformas que o STF poderia fazer já, por sua conta. Depende de desapego e
liderança para republicanizar a agenda, reprimir a obstrução do cabo e do
soldado e tomar decisões corajosas com sofisticação jurídica e o selo do
colegiado. A angústia de olhar para o tribunal em busca de arrojo e liderança e
lá encontrar Luiz Fux, Dias Toffoli e Gilmar Mendes não é razão para desistir.
Hoje
o colegiado do STF decide se mantém a decisão
monocrática de Barroso que reconhece direito de minoria do Senado de abrir CPI e
o dever de Rodrigo Pacheco de abri-la. Rumores
dizem que o STF vai “modular” essa decisão elementar e dar ao Senado a
liberdade para ampliar o objeto da investigação e postergar a CPI.
Seria
um “caminho do meio” para atender a Bolsonaro,
que prometeu dar porrada em senador e induziu falsa equivalência entre
os deveres de abrir CPI e abrir impeachment (não os 111 pedidos de impeachment
contra ele, mas os pedidos contra ministros do STF). Com base na fórmula “ou
bota tudo ou zero a zero”, mandou o recado.
Cair
na arapuca
juvenil tramada por senador e presidente da estatura de um Kajuru e um
Bolsonaro é melancólico demais para qualquer biografia. Melancólico
sobretudo para um tribunal que, se não tem das histórias mais admiráveis nos
anais da Justiça, exibe um orgulho espalhafatoso em cada cerimônia, um êxtase
da autoimportância em cada discurso. É cafona e arcaico, mas não precisaria ser
covarde.
*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.
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