O Globo
Alessandra Sampaio tinha a angústia do não
saber estampada no rosto e na voz quando surgiu pela primeira vez no telão da
GloboNews,em entrevista a André Trigueiro. Seu marido, Dom Phillips, jornalista
britânico radicado no Brasil, desaparecera havia dias na Amazônia, junto ao
indigenista Bruno Pereira, e tudo eram incógnitas. Havia um blackout total de notícias,
nenhum vestígio ou pista de ambos, e as primeiras buscas oficiais se arrastavam
anêmicas. Apesar do desamparo, Alessandra conseguiu retratar de forma indelével
o companheiro de vida:
—Eu sou espiritualizada, [o Dom], mais reservado, me dizia:
“Alê, para mim Deus é a natureza” — contou, tomando fôlego.
Quem a ouviu murmurar frase tão absoluta
entendeu tudo. Entendeu sobretudo o motivo oculto de a frase seguinte começar
no condicional e prosseguir com o verbo no pretérito:
—Se ele partiu ali [naquela imensidão amazônica], foi
no meio do Deus no qual acreditava.
Foi quase um réquiem — belo, profundo, (e)terno. Vale para dois seres humanos raros. Ao contrário das outras criaturas que habitam a Terra, desaprendemos a andar por ela com a leveza e o cuidado de um Dom Phillips e um Bruno Pereira.
Phillips, como o mundo inteiro agora sabe,
fez do compromisso com a selva brasileira e da proteção aos povos indígenas uma
razão de vida. Anos a fio, de caneta na mão e caderno de repórter sobre os
joelhos, ouvia e escrevia, ouvia e fazia amigos, ouvia e anotava. Conquistou
respeito e admiração por seu jornalismo rigoroso em região coalhada de
predadores humanos. Bruno Araújo Pereira, por seu lado, tido como o maior
indigenista em atividade no Brasil e há décadas referência internacional sobre
nossos povos indígenas, deveria ser motivo de orgulho irrestrito por parte da
Fundação Nacional do Índio, certo? Errado. Não para a Funai desossada com fúria
pelo desmatador em chefe Jair Bolsonaro. Apesar de Pereira ser o servidor
público de maior prestígio da Funai, a primeiríssima manifestação sobre o
desaparecimento do indigenista por parte do presidente da entidade, delegado da
PM Marcelo Xavier, foi frisar que Pereira estava afastado do órgão. Sim, estava
de licença não remunerada, trabalhando com a paixão de sempre para a União dos
Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) —havia sido ejetado de importante
função na Funai na esteira da “porteira aberta” ao ilícito, implantada como
política no Ministério do Meio Ambiente de Ricardo Salles.
A realidade amazônica sempre foi crua —
pelo isolamento, pela geografia inóspita, pelas riquezas cobiçadas e pela
bandidagem à solta. Segundo dados do coletivo jornalístico Tierra de
Resistentes, 139 ativistas dedicados à defesa ambiental da região foram
assassinados entre 2009 e 2020 —pequena parte visível na imensidão submersa de
criminalidade, ausência deliberada do Estado, falência gritante das Forças
Armadas, abandono do território nacional e de sua gente à própria sorte.
É possível que a ruidosa pressão
internacional — uma das maiores sofridas por um governo brasileiro desde os
tempos da ditadura militar —, somada à repentinamente intensa cobrança das
instituições nacionais, traga respostas confiáveis ao clamor geral. Se assim
for, a crônica do que terá acontecido na manhã do domingo dia 5 — quando Bruno
e Dom navegavam pelo Rio Itaquaí sem nunca chegar ao destino — pode servir de
retrato deste triste Brasil à deriva em 2022. Tudo cheira horrendamente mal
nesta causa que entrementes se tornou célebre. Para a escritora Ursula K. Le
Guin, uma das grandes dádivas da vida é conhecer o abismo da escuridão para
deixar de temê-la. Pode ser. Também não são poucos os que proclamam ser a noite
mais verdadeira que o dia. A esperança mais urgente é haver claridade e verdade
— até porque, se isso ocorrer, não é de descartar a escavação em série da
podridão política atual.
Se nossas origens estão na terra, na terra também está nossa humanidade.
Um comentário:
Falou alguém com propriedade.
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