Editoriais
Fome é marca nefasta da gestão Bolsonaro
O Globo
A palavra que resume o governo Jair
Bolsonaro é involução. Sob seu comando, desde 2019 o Brasil retrocedeu em
várias áreas. Uma das heranças mais nefastas que Bolsonaro nos deixará é a
fome, um ataque ao direito fundamental às necessidades mais básicas.
Falta comida na mesa de 33 milhões de brasileiros, segundo o
último levantamento da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança
Alimentar e Nutricional (Penssan), a partir de entrevistas em 12 mil domicílios
de todas as regiões do país. Doze milhões de famintos estão no Nordeste, 11,7
milhões no Sudeste. Outros 32 milhões comem menos do que costumavam ou
suprimiram uma das refeições. Há ainda um contingente de 59 milhões que não
sabem se terão dinheiro para comprar comida no futuro e passaram a escolher
produtos mais baratos na hora de fazer as compras.
Na comparação com um ano atrás, o número dos que passam fome aumentou 14 milhões. É mais que a população do município de São Paulo, o maior do Brasil. O grupo dos que comem menos cresceu 8 milhões, soma dos habitantes de Brasília, Belo Horizonte e Fortaleza. Bolsonaro pode ser maquiado, penteado e treinado para falar do Auxílio Brasil, programa social que substituiu o Bolsa Família. Mas infelizmente não é capaz de mudar a triste realidade. Falta trabalho, falta renda, falta comida.
Por algum tempo, a fome parecia um flagelo
destinado a ficar restrito ao passado, descrito em livros como “Vidas secas”,
de Graciliano Ramos, “Quarto de despejo”, de Carolina de Jesus, ou “A fome”, de
Rodolfo Teófilo. Em 2013, os brasileiros com insegurança alimentar moderada
(quantidade insuficiente) ou grave (fome) haviam caído a 10%. Na mesma época, o
Brasil saiu do Mapa da Fome feito pelas Nações Unidas.
Pois as barbeiragens de Bolsonaro na
economia, sua falta de capacidade para tomar as melhores decisões nos piores
momentos da pandemia e o desmonte de programas do Estado destinados a combater
o problema trouxeram o flagelo de volta. Hoje, nada menos que 30% dos
brasileiros sofrem de insegurança alimentar moderada ou grave, o dobro do nível
registrado no último ano do governo Temer.
Os mais afetados não são uma novidade.
Lares com crianças sofrem mais. Mesmo em domicílios com rendimento mensal acima
de um salário mínimo per capita, a insegurança alimentar é maior se o provedor
for negro. Dois de cada dez lares comandados por mulheres convivem com a fome.
Entidades da sociedade civil não têm medido
esforços para distribuir comida aos necessitados desde que eclodiu a pandemia.
Mas, mesmo com a recuperação da atividade econômica nos últimos meses, a fome
não parou de aumentar.
Se estivesse interessado em governar,
Bolsonaro poderia ter evitado uma calamidade dessa magnitude. Em vez disso,
preferiu investir seu tempo em ataques à democracia, discursos cheios de
grosserias, brigas intermináveis com inimigos imaginários e passeios de
motocicleta. Enquanto isso, a população só quer viver uma vida digna, sem
passar fome. Difícil imaginar retrocesso civilizatório maior.
Sumiço de indigenista e jornalista na
Amazônia exige resposta rápida
O Globo
Causou comoção internacional o
desaparecimento do indigenista Bruno Araújo Pereira, servidor licenciado da
Fundação Nacional do Índio (Funai), e do jornalista Dom Phillips, colaborador
do jornal britânico The Guardian. Eles foram vistos pela última vez na manhã de
domingo, em São Rafael, no Vale do Javari (AM), que concentra a maior
quantidade de povos isolados do mundo. O trajeto até Atalaia do Norte deveria
ter sido feito em cerca de duas horas numa embarcação nova, mas a dupla não
chegou ao destino. Pereira é um dos funcionários mais experientes da Funai e
profundo conhecedor da região.
É compreensível que o desaparecimento,
envolvendo um indigenista brasileiro e um jornalista estrangeiro numa região
sob constante escrutínio do mundo, desperte atenção da comunidade
internacional. Não se pode dizer que o governo não esteja mobilizado para
encontrá-los. As buscas pelos dois envolvem Marinha, Exército, Força Nacional,
Polícia Federal, Funai, comunidades ribeirinhas e representantes de povos
indígenas. Até ontem, as equipes não tinham pistas da dupla. A polícia já ouviu
testemunhas e, na terça-feira, prendeu um homem suspeito de participação no
desaparecimento.
Enquanto não surgem indícios do que pode
ter ocorrido, é prematuro afirmar qualquer coisa a respeito. Por mais tentador
que seja culpar os vilões de sempre numa Amazônia negligenciada pelo poder
público, o presidente Jair Bolsonaro não deixa de ter certa razão ao chamar a
atenção para os riscos inerentes à expedição. “Realmente, duas pessoas apenas
em um barco, em uma região daquela, completamente selvagem, é uma aventura que
não é recomendável que se faça”, disse em entrevista ao SBT News. “Pode ser um
acidente, pode ser que tenham sido executados. Tudo pode acontecer.”
Bolsonaro se esqueceu apenas de lembrar as
ameaças que Pereira vinha sofrendo em função de seu trabalho. Ele promovia, nas
comunidades indígenas, o combate a invasores como pescadores, madeireiros e
garimpeiros ilegais, que proliferam pelo Vale do Javari no vácuo da
fiscalização. A região, no extremo oeste do Amazonas, junto à fronteira com o
Peru, é ainda mais perigosa por ser rota de narcotraficantes para acessar
outros estados do país.
Como mostrou reportagem do GLOBO, um
bilhete enviado à União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja)
continha ameaças explícitas a Pereira: “Só vou avisar dessa vez, que se
continuar desse jeito, vai ser pior para vocês”. O indigenista havia mapeado
locais e apontado, com fotos, suspeitos de uma organização criminosa que atua
na pesca e na caça ilegal na região.
O fundamental é que as buscas continuem e
que as investigações sobre o caso sejam ágeis, rápidas e transparentes. Não
basta despachar forças de segurança para a Amazônia e divulgar imagens das
operações para mostrar que o governo está trabalhando. É preciso dar uma
resposta rápida às famílias e à sociedade sobre o que aconteceu. Um caso dessa
magnitude não pode ser tratado com a indiferença que o governo dispensa à
Amazônia.
Reforço à defesa
Folha de S. Paulo
STF reafirma cassação que serviu como
resposta a investidas contra as urnas
Foram efêmeros os resultados alcançados
pelos ministros indicados por Jair Bolsonaro (PL) ao Supremo Tribunal Federal
na tentativa de restituir o mandato a um aliado do presidente cassado pelo
Tribunal Superior Eleitoral.
A agitação teve início na quinta (2),
quando Kassio Nunes Marques suspendeu
a punição ao deputado estadual Fernando Francischini (União
Brasil-PR), condenado em outubro por divulgar notícias falsas sobre as urnas
eletrônicas.
Na terça (7), a Segunda Turma do STF derrubou
a liminar concedida pelo ministro e reafirmou a decisão do TSE. O
único que ficou ao lado de Nunes Marques foi André Mendonça, o outro magistrado
escolhido por Bolsonaro.
Nas eleições de 2018, Francischini espalhou
a suspeita de que algumas urnas impediam o voto em Bolsonaro. O boato não tinha
nenhum fundamento e foi desmentido após análise dos vídeos que alimentavam a
patranha.
O episódio poderia merecer esquecimento em
outros tempos, mas recebeu resposta duríssima porque o TSE encontrou nele
elementos para reforçar as defesas contra os constantes ataques bolsonaristas à
ordem democrática.
O tribunal indicou que passaria a ser
intolerante com atos do gênero. Firmou-se o entendimento de que eles devem ser
tratados como uso indevido dos meios de comunicação e fixaram-se critérios para
avaliar a gravidade de cada caso.
Se o efeito dissuasório da medida ainda
está por ser demonstrado na campanha eleitoral deste ano, é certo que um dos
seus alvos principais se comporta como se não fosse com ele, impunemente.
Bolsonaro continua fazendo de tudo para
tumultuar o processo eleitoral, lançando dúvidas sobre a segurança das urnas
eletrônicas e insistindo na fantasia de que uma fraude teria impedido sua vitória
no primeiro turno do pleito de 2018.
Na mesma terça-feira, o mandatário voltou a
falar no assunto ao
criticar a decisão que manteve a cassação do aliado e disse concordar
com Francischini, como se estivessem em questão suas opiniões, não uma rematada
mentira.
Os ministros do Supremo Edson Fachin e
Gilmar Mendes argumentaram que há limites ao exercício da liberdade de
expressão, e a corte considera inaceitável seu uso para difamar o sistema
eleitoral e outros pilares da democracia. É lamentável, de todo modo, que o
confronto tenha chegado a tal ponto.
Ao minar os esforços que o Judiciário tem feito
para defender a lisura das urnas, Nunes Marques e Mendonça contrariaram o
entendimento da maioria do tribunal que integram. Não havia mesmo como seu
intento prosperar.
Endereço degradado
Folha de S. Paulo
Centro de São Paulo tem sido objeto de
planos frustrados; é preciso repovoá-lo
Em maior ou menor grau, a degradação de
áreas centrais é um fenômeno urbanístico que atinge boa parte das metrópoles do
planeta. Esvaziamento do uso residencial, estrutura obsoleta para automóveis e
o deslocamento de eixos financeiros para outros bairros explicam, em parte, o
problema.
Observada há décadas, a deterioração do
centro de São Paulo tornou-se mais aparente com o crescimento expressivo da
população de rua e, mais recentemente, em razão das operações policiais que
tentam neutralizar a cracolândia.
Nesse contexto, a ideia de transferir a
sede do governo paulista do Morumbi, bairro nobre da zona sul, para próximo do
agora itinerante feirão de drogas suscitou
debates entre políticos e urbanistas.
A proposta foi aventada pelo pré-candidato
Tarcísio de Freitas (Republicanos). Para o ex-ministro da Infraestrutura de
Jair Bolsonaro (PL), trazer "o centro do poder" ajudaria na
revitalização da região e até a acabar com a cracolândia.
O plano não constitui novidade: em 2008, o
então governador José Serra (PSDB) cogitou trocar o Bandeirantes pelo Palácio
dos Campos Elíseos, ideia abandonada pelos seus sucessores.
Joia arquitetônica, a sede do comando do
estado de 1912 a 1965 foi restaurada duas vezes —na última delas por R$ 20
milhões— e está sem uso. A promessa é que venha a abrigar o Museu das Favelas.
Muitos outros projetos ficaram pelo
caminho. O mais ambicioso deles, o Nova Luz, previa uma revolução urbanística
em 44 quarteirões, inclusive na área onde atuava o tráfico de crack. Concebido
no começo da década passada pelo ex-prefeito Gilberto Kassab (PSD), também
acabou engavetado.
Às intervenções frustradas somam-se a
derrubada ou transformação em parque do Minhocão, via elevada na região
degradada, e o Renova Centro, programa que pretendia desapropriar prédios para
transformá-los em habitações populares, mas que pouco avançou.
A depender do plano, a transferência de
edifícios públicos para a zona central pode ser bem-vinda, como já ocorreu com
a prefeitura paulistana, em 1992, e agora com o hospital da mulher Pérola
Byington, que deve começar a atender no segundo semestre.
Entretanto faz-se necessário também um
amplo programa de repovoamento, que aproveite prédios sem uso e vislumbre
investimentos em espaços de uso comunitário, como parques e equipamentos
culturais e esportivos. Mais do que ocupar o centro, é preciso vivê-lo.
O Brasil foi abandonado
O Estado de S. Paulo
Bolsonaro e seus sócios do Centrão largaram o País à própria sorte para cuidar de seus interesses eleitorais. Resultado: 33 milhões de brasileiros com fome
O País voltou a ser assombrado pelo
espectro da fome em uma escala que não se via desde a década de 1990. De acordo
com os dados do 2.º
Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de
Covid-19, divulgados ontem, são 33,1 milhões de brasileiros que
dormem e acordam todos os dias sabendo que não terão o que comer. Além desse
inacreditável contingente de nossos concidadãos vivendo em condições
sub-humanas, equivalente às populações da Bélgica, de Portugal e da Suécia
somadas, mais da metade da população brasileira (58,7%) está submetida a algum
grau de insegurança alimentar (leve, moderada ou grave).
Aí está a dimensão do retrocesso
patrocinado por um dos piores presidentes da história brasileira. O nome de
Jair Bolsonaro estará indelevelmente ligado à degradação da dignidade de
milhões de seus governados, seja por sua comprovada incapacidade moral e
administrativa para o cargo, seja por sua notória aversão ao trabalho. A fome
já seria inadmissível mesmo que fosse algo localizado; sendo verificada em
larga escala, mesmo em um país em que há fartura de alimentos, trata-se de uma
atrocidade.
Bolsonaro e seus sócios do Centrão no
Congresso abandonaram o País à própria sorte porque não estão interessados no
bem-estar dos brasileiros a não ser na exata medida de seus objetivos
eleitoreiros. Por essa razão, há profunda desconexão entre as prioridades da
atual cúpula do Estado e as da esmagadora maioria dos cidadãos – a começar pela
mais primária delas, a de fazer três refeições por dia.
Um governo que fosse digno do nome, com
apoio de um Legislativo igualmente cioso das necessidades mais prementes daqueles
a quem cumpre representar, estaria empenhado dia e noite em garantir o
bem-estar de seus governados antes de qualquer coisa, proporcionando-lhes as
condições mínimas para uma vida digna por meio de políticas públicas
responsáveis, bem elaboradas e implementadas. Mas não é isso o que
acontece.
Desde que assumiu o cargo, Bolsonaro só tem
olhos para a reeleição. Nunca governou de fato o País nem jamais demonstrou
interesse em fazê-lo. Populista, toma decisões sempre de supetão e sem qualquer
planejamento, para responder a questões imediatas, deixando para depois ou
simplesmente ignorando problemas de longo prazo. Assim chegamos à fome.
Os presidentes das duas Casas Legislativas,
por sua vez, também parecem estar mais preocupados com a recondução aos cargos na
próxima legislatura do que em aliviar o padecimento real da população. Só isso
explica a chancela às teses estapafúrdias de Bolsonaro, como essa obsessão em
torno dos combustíveis, como se a causa raiz para o aumento do número de
brasileiros passando fome do ano passado para cá (mais 14 milhões de pessoas)
fosse o preço do litro do diesel e da gasolina.
A fome que dói nesses tantos milhões de
brasileiros não decorre diretamente da pandemia de covid-19, da delinquência de
Vladimir Putin ao invadir a Ucrânia nem da alta dos preços dos combustíveis. A
fome é o resultado mais perverso da acefalia governamental do País há quase
quatro anos. É corolário desse arranjo macabro engendrado por um presidente da
República extremamente fraco que, para não ser ejetado do poder, se viu
obrigado a vender sua permanência no cargo a oportunistas no Congresso,
franqueando-lhes nada menos que o controle sobre parte do Orçamento sem a
necessidade de prestar contas.
A pusilanimidade do presidente da
República, portanto, explica muita coisa. Mas, em defesa de Bolsonaro, é bom
dizer não se teria chegado ao atual estado de coisas inconstitucional sem a
colaboração decisiva de parte considerável da classe política, que ignora o que
vem a ser interesse público.
Conforme a Constituição, a “dignidade da
pessoa humana” é fundamento da República Federativa do Brasil (artigo 1.º,
III), e um dos objetivos dessa República é “erradicar a pobreza e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (artigo 3.º,
III). Além disso, o artigo 6.º cita a “alimentação” como um dos direitos
sociais. Para o consórcio político que sustenta o bolsonarismo, essas
determinações são letra morta.
Os frutos do Marco Civil da Internet
O Estado de S. Paulo
Estudo recente comprova que o Marco levou a uma maior segurança jurídica, desincentivando comportamentos ilícitos sem prejudicar a liberdade de expressão
O impulso à digitalização dado pela pandemia
intensificou nos Parlamentos do mundo inteiro as discussões sobre a regulação
das redes digitais. O Brasil está implementando a Lei Geral de Proteção de
Dados, de 2018, enquanto tramita no Congresso a “Lei de Liberdade,
Responsabilidade e Transparência na Internet” (apelidado “PL das Fake News”). O
País conta com um importante arcabouço, o Marco Civil da Internet, de 2014.
Um
recente estudo da Terranova Consultoria, feito com apoio do Google e
divulgado pelo site Jota,
comprovou a funcionalidade desse dispositivo. As métricas provam que o Marco
resultou em maior segurança jurídica sem prejudicar a liberdade de expressão e
os demais direitos do usuário.
Como dizem os autores, “tribunais são
hospitais da vida social”, seja pacificando a sociedade por meio da superação
das disputas atuais, seja prevenindo conflitos futuros. Um sistema jurídico
ideal é aquele no qual o sentido das leis é inequívoco e os tribunais são transparentes,
decidem de forma consistente e apresentam custo razoável para litigar. A maior
segurança jurídica foi comprovada pela redução expressiva do volume de demandas
judiciais, do tempo de duração dos processos e das taxas de recorribilidade das
ações.
Ao mesmo tempo, essa desjudicialização não
implicou ausência de tutela jurídica. Houve uma expansão no volume de remoções
extrajudiciais de conteúdos que ferem as políticas de uso dos provedores, como
pornografia, ameaças de agressão ou manifestações explícitas de racismo. Mais
importante, os autores dos conteúdos estão sendo devidamente responsabilizados
pelos danos causados: enquanto a proporção de ações de indenização contra
provedores caiu, a de pessoas físicas como corréus subiu.
O Marco ganhou boa reputação internacional
por sua regulação equilibrada de princípios como a neutralidade da rede,
privacidade, função social da internet, liberdade de expressão e
responsabilidade dos provedores. “Finalmente um projeto de lei reflete como a
internet deve ser: uma rede aberta, neutra e descentralizada, em que os
usuários são o motor para a colaboração e inovação”, disse o criador da rede
mundial de computadores (World Wide Web), o cientista britânico Tim
Berners-Lee.
Num momento de deliberação sobre a regulação
das redes, o Marco é um modelo de equilíbrio, não só pelo seu conteúdo, mas
pela forma como foi construído. Como a própria internet, disse Berners-Lee, ele
resultou do trabalho dos usuários, por meio de um “processo inovador, inclusivo
e participativo”, consumado pelo Congresso após três anos de tramitação.
Uma das questões mais controversas nos
debates contemporâneos é justamente a responsabilização das redes pelas
distorções causadas pelo estímulo e difusão, por parte de seus algoritmos, de
conteúdos com alto potencial de viralização, porém tóxicos, como fake news e
discursos de ódio. Por outro lado, antes do Marco era grande o risco da
distorção inversa: a tendência de responsabilizar os provedores por danos
causados por conteúdos produzidos por terceiros – em outras palavras, de culpar
o mensageiro, e não o autor da mensagem.
Era um ambiente deletério em diversos
sentidos. Primeiro, porque incentivava os provedores a criarem controles
excessivamente rigorosos de seu conteúdo, ao ponto da censura, ameaçando a
neutralidade da rede e a liberdade de expressão. Ao mesmo tempo, a
possibilidade de deslocar o foco de responsabilização para intermediários
incentivava os usuários mal-intencionados a publicar e difundir conteúdos
impróprios.
O Marco solucionou esse problema ao
estabelecer, em seu art. 19, que a responsabilidade pelos eventuais danos de um
conteúdo cabe ao seu autor. Já a responsabilidade do provedor está condicionada
à desobediência de ordem judicial de remoção de conteúdo.
Como concluem os autores do estudo sobre o
Marco Civil, o resultado é que o usuário de internet “é servido por um sistema
que garante a sua liberdade de expressão, que desincentiva comportamentos
ilícitos e que se tornou mais célere e previsível na remoção e
responsabilização por conteúdo danoso”. A internet ainda é, em muitos momentos,
um ambiente tóxico, mas o Brasil está bem servido de legislação para enfrentar
esse desafio.
Um aperitivo da crise do diesel
O Estado de S. Paulo
Por causa da escassez, a Argentina raciona o combustível; controle de preços desorganiza um mercado já conturbado
O racionamento do diesel em províncias
argentinas por causa da escassez do combustível deve servir de alerta para o
Brasil. O desabastecimento que a Argentina enfrenta resulta da combinação de
fatores conjunturais, como redução da produção local e alta sazonal da demanda.
Mas sua causa principal é o controle de preços imposto pelo governo do
presidente Alberto Fernández, com o objetivo de conter a inflação, de
praticamente 60% em 12 meses, a maior em 30 anos. Boa parte do diesel consumido
no país é importada. E quem importará um produto com o preço em alta no mercado
mundial para vendê-lo no mercado interno por um preço controlado e menor, com
pesadas perdas?
As ineficazes e grosseiras medidas
aventadas ou anunciadas pelo presidente Jair Bolsonaro para conter a alta do
diesel, da gasolina e do gás de cozinha ainda não geraram problemas tão agudos
como os que enfrenta a Argentina. Mas se ele tiver êxito com sua insistência em
controlar artificialmente os preços praticados pela Petrobras, uma crise de
abastecimento será armada. Não se sabe se ela explodirá antes ou depois da
eleição presidencial, mas o resultado dessa aventura acabará por surgir,
tornando ainda mais difícil a vida dos brasileiros. Virá na forma de escassez
aguda ou na de explosão de preços, ou nas duas.
No Brasil, a participação do diesel
importado no consumo interno passou de 20,9% em 2020 para 23,2% no ano passado,
segundo dados da Agência Nacional d0 Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis
(ANP).
Embora a Petrobras mantenha os preços dos
combustíveis alinhados com os valores médios praticados no exterior, o
intervalo entre uma correção e outra pode resultar em defasagens. No caso do
preço da gasolina, por exemplo, sem reajuste por cerca de três meses, a
defasagem em relação aos preços internacionais é estimada em 20%; para o
diesel, em 14%. Alta do barril do petróleo por causa da guerra na Ucrânia e
desvalorização do real ante o dólar são as causas principais dessa defasagem.
É possível, por meio de forte pressão
política, conter os preços dos combustíveis mesmo que isso implique perdas para
a Petrobras. Foi isso que fez com muita insistência o governo lulopetista e a
consequência foi a destruição do equilíbrio econômico-financeiro da empresa,
cuja dívida cresceu exponencialmente e, até hoje, impõe um rígido programa de
ajuste. É o que Bolsonaro vem tentando fazer, sem pleno êxito, por causa da resistência
da gestão profissional da empresa.
Mas a defasagem de preços não prejudica
apenas a Petrobras. Afeta também as operações das empresas importadoras de
diesel, que, mesmo sendo livres para fixar preços, perdem competitividade se os
corrigirem de acordo com o mercado internacional, enquanto a maior empresa do
setor, a própria Petrobras, mantém seus preços comprimidos.
Não é de estranhar que se intensifiquem
alertas sobre possível escassez de diesel no País já no início do segundo
semestre. Regiões mais distantes das refinarias nacionais seriam as primeiras a
serem afetadas.
Uma cisão aberta no STF contra punição a
fake News
Valor Econômico
As afrontas de Bolsonaro às regras
democráticas pressupõem a blindagem contra impeachment que lhe dá o Centrão
Foram péssimos os sinais emitidos pelas
escaramuças jurídicas no Supremo Tribunal Federal sobre a cassação dos mandatos
do ex-delegado de polícia Fernando Francischini (PL-PR) e Valdevan Noventa
(PL-SE), ambos do partido do presidente da República, Jair Bolsonaro. O
ministro Kassio Nunes Marques, indicado por Bolsonaro, reverteu decisão do
Tribunal Superior Eleitoral (TSE), tomada por 5 votos a um, pela cassação de
Francischini e concedeu liminar restituindo-lhe o mandato, obtido com 428 mil
votos, a maior votação de deputado estadual no Paraná nas eleições de 2018.
Depois, a Segunda Turma do STF, por 3 a 2, confirmou a sentença do TSE.
Bolsonaro esbravejou, disse que não viveria “como um rato” e prometeu “reação”.
Marques colocou em xeque o principal alvo
de vigilância do Judiciário nas próximas eleições, o da propagação e financiamento
de fake news. Francischini disse, no dia das eleições, em outubro de 2018, que
as urnas não permitiam voto em Bolsonaro e outras mentiras. Passaram-se longos
três anos até sua cassação, o que dá uma ideia da lentidão da Justiça
Eleitoral. O ambiente político já havia mudado radicalmente.
O deputado paranaense foi o primeiro
político cassado por disseminar fake news, como exemplo de que a Justiça não
toleraria os ataques em série contra as urnas eletrônicas feitas pelo
presidente Bolsonaro, que escolheu como inimigos os ministros do STF e concorda
com os métodos usados por bolsonaristas para espalhar mentiras nas redes
sociais.
Marques voltou ao passado para devolver o
mandato a Francischini. Sem dinheiro para campanha e escorado em um partido sem
estrutura, com deputados que caberiam em um fusca, com parco tempo de
propaganda na TV, Bolsonaro foi o primeiro presidente eleito com a participação
decisiva de uma campanha feita quase toda ela nas redes sociais. Ciente desse
poder de fogo, que o levou ao Planalto, Bolsonaro transformou esse tipo de
comunicação no seu meio predileto de falar a seus apoiadores e, com o “gabinete
do ódio” instalado no governo, uma forma de atacar inimigos políticos, reais e
imaginários.
A argumentação de Marques foi a de que fake
news não era crime bem delineado pelo TSE na época, que a capacidade de uma
live mentirosa no dia da eleição teria influência nula no resultado do pleito -
argumento também usado pelo ministro André Mendonça -, e que a internet não
deveria ser igualada aos meios de comunicação social em eventuais infringências
da legislação eleitoral. Com base na primeira tese, Marques disse que era
incabível que um entendimento posterior do TSE tivesse efeito retroativo e
ejetasse Francischini do seu mandato.
Os especialistas divergem neste ponto, mas
o fato é que, a partir de agora, dentro do próprio STF, há ministros que
defendem que campanhas de fake news fazem parte do jogo eleitoral normal das
redes sociais e não há nada errado nisso, em princípio.
Ao colocar em dúvida não só a
caracterização de crime eleitoral das fake news como as punições rigorosas dela
decorrentes, os ministros indicados por Bolsonaro deram razão às críticas do
presidente contra o STF e se colocaram como uma barreira interna na corte à
coibição dos exageros e burlas legais que certamente ocorrerão na mais
turbulenta eleição da história da Nova República.
Francischini pode ter se sentido um bode
expiatório do TSE e Bolsonaro vê sua condenação dessa maneira, mas a cassação,
suspensão e reafirmação da pena, com toda a polêmica ao redor, teve um tom
surreal. Em sua sentença contra a decisão de Marques, o ministro Gilmar Mendes
disse que o “ataque sistemático à confiabilidade das urnas não pode ser
considerado como tolerável no estado democrático de direito, especialmente por
um pretendente a cargo político com larga votação”. Para ele, essa conduta
“ostenta gravidade ímpar, que pode comprometer o pacto social em torno das
eleições”. No mesmo dia, o presidente da República disse que Francischini
apenas falava sobre as urnas o que ele, Bolsonaro, afirmava todos os dias.
Os ataques de Bolsonaro à confiabilidade
das urnas eletrônicas, porém, estão muitos decibéis acima. Seu intento claro é
criar uma algazarra de grandes proporções nas apurações que o impeça de ser
derrotado e de deixar o poder pelos meios que estiverem disponíveis. Suas
afrontas às regras democráticas pressupõem a blindagem contra impeachment que
lhe dá o Centrão, mas suas reações histéricas são as de quem vê a derrota
eleitoral a caminho.
Um comentário:
Todos os editoriais são contra a gestão,indigestão e congestão de Bolsonaro,rs.
Postar um comentário