sábado, 12 de novembro de 2022

Eduardo Affonso - O macarthismo do bem

O Globo

Muitos tentam silenciar a atriz, invalidando suas crenças, boicotando sua carreira, forçando-a a sair de cena

Para qualquer pessoa minimamente conectada com o século XXI, é difícil não discordar da Cássia Kis.

Onde ela vê um movimento de destruição da família, eu vejo o de construção de novos modelos, mais inclusivos. Quando ela diz que que “homem com homem não dá filho, mulher com mulher também não dá filho”, penso nos casais heterossexuais em que o marido é (como eu) infértil, ou a mulher (como a própria Cássia) já entrou na menopausa. Casais assim tampouco produzem filhos — e isso não os invalida como células familiares, não os torna afetivamente estéreis.

Cássia é profundamente católica; eu, visceralmente ateu. Ela fez um aborto quando jovem, hoje é militante pró-vida; eu era contrário ao aborto, me tornei pró-escolha. Havemos de ter outras divergências, porém — e tudo o que vem antes de uma conjunção adversativa passa automaticamente a segundo plano — nada disso me impede de respeitá-la como cidadã e como artista. Divergir dela e contestar seus argumentos só fortalece a ideia de que o diálogo seja a forma mais eficaz de vencer preconceitos e de conviver com diferenças.

Cássia é uma mulher talentosa, corajosa, que defende com clareza aquilo em que acredita. Muitos, entretanto, têm preferido tentar silenciá-la — invalidando suas crenças, boicotando sua carreira, forçando-a a sair de cena (há pressão para que o personagem que interpreta numa novela seja eliminado da trama, e ela venha a ser demitida).

Os colegas que compactuam com isso terão apreço à arte, à diversidade, à liberdade de expressão? Será que não percebem quanto se assemelham aos que, de verde e amarelo, clamam pela ditadura do pensamento único?

Houve um tempo em que, para conseguir papéis no cinema, na televisão, era preciso esconder a orientação sexual “desviante”. Terá chegado a hora de ter que disfarçar a opção política? Os testes de elenco exigirão, além de talento e physique du rôle, atestado de antecedentes ideológicos?

Quem pede a cabeça de Cássia Kis se crê virtuoso, defensor de uma causa justa — exatamente como os que, do alto de sua superioridade moral, se dedicaram, século após século, ao sublime ofício da caça às bruxas.

Esses militantes talvez não se deem conta de estar reeditando as práticas de discriminação do nazifascismo, dos expurgos comunistas, das patrulhas ideológicas dos anos 70, do macartismo. Este último tentou destruir a carreira de uma infinidade de artistas e intelectuais. Gente como Dashiell Hammett, Richard Attenborough, Luis Buñuel, Charlie Chaplin, Leonard Bernstein, Dalton Trumbo, Lillian Hellman, Dorothy Parker, Orson Welles — e até Lucille Ball.

Hora de lembrar Caetano: Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem / Apenas sei de diversas harmonias bonitas possíveis sem juízo final.

Para quem quer que tenha ouvido falar das atrocidades do século XX e dos males que a intolerância nos causou, dói aceitar que ainda se cogite colar estrelas (agora, vermelhas) na porta de estabelecimentos para indicar o inimigo — ou apagar um personagem para calar a voz de uma atriz.

2 comentários:

ADEMAR AMANCIO disse...

A atriz sempre foi contra os homossexuais,mas deixem Cássia trabalhar em paz.Quando desencarnar vai descobrir que espírito não tem sexo e que a maioria dos ''desviantes'' só sofrem... Temos um carma terrível.Sim,eu sou espírita.

Anônimo disse...

O problema da Kássia Kis e outras pessoas públicas que apoiam esse movimento da extrema direita não se restringe às suas opiniões sobre a família tradicional, aborto, homossexualismo, já que essas divergências de opiniões sempre existiram e não havia lacraçao. Acho que a repulsa se dá dessa forma extrema, porque esse movimento extrapolou os pilares do mero conservadorismo e trilhou para atos antidemocráticos, como não aceitar o resultado das urnas eletrônicas e pedir, aos milhares, nas portas dos quartéis a intervenção das Forças Armadas, ou seja, a ruptura do Estado Democrático de Direito. E a classe artística e todos nós sabemos o que significa uma Ditadura Militar para a cultura e as liberdades do país. Então, não é tão simples assim pedir tolerância para a atitude de Kássia Kis, que formadora de opinião que é, prega a intolerância e faz coro com a volta da Ditadura Militar. E os militares estão em êxtase, basta ver a nota leniente conjunta do Exército, Marinha e Aeronáutica e, ontem, a ameaça velada do General Eduardo Villas Boas, ex comandante do Exército e apoiador do Presidente Jair Bolsonaro, com um recado ao silêncio da grande mídia ao movimento antidemocrático, fazendo alusão à queda do muro de Berlim. Mas é apenas a minha opinião, ainda em construção, pois o tema é muito difícil.