Ampliação do Brics reflete relevância menor do Brasil
O Globo
Dos quatro fundadores originais do bloco,
país é o único cuja influência diminuiu desde a criação em 2009
A cúpula do Brics na África do Sul acabou
com o anúncio da ampliação do bloco. Argentina, Arábia Saudita, Emirados Árabes
Unidos, Egito, Irã e Etiópia foram convidados a ingressar a partir do ano que
vem. A expansão é uma vitória da China. Para o Brasil, não se pode falar
propriamente em derrota — ainda é vantajoso estar num bloco com as maiores
potências emergentes —, mas o resultado certamente reflete a perda de
relevância brasileira na cena global. Dos quatro fundadores originais do Brics
— Brasil, Rússia, Índia e China —, o Brasil é o único cuja influência diminuiu
desde a criação do bloco, em 2009.
Os indianos se tornaram o país mais populoso, mercado mais promissor e acabam de dar prova de capacidade tecnológica ao enviar uma missão à Lua. Os russos encolheram econômica e politicamente, mas a aventura militar na Ucrânia demonstra como podem dar dor de cabeça ao Ocidente. Os chineses se tornaram a potência desafiante que busca moldar o sistema global — portanto o Brics — à sua maneira.
No discurso, a China insiste que os Estados
Unidos são uma potência em declínio. Para os chineses, seu crescimento
econômico das últimas décadas demonstra que modernização não é sinônimo de
ocidentalização. A ordem internacional baseada nas regras atuais, argumentam,
beneficia americanos e europeus. Foi nesse contexto que a China pressionou para
ampliar o Brics. Foi sintomático que o Irã, país sob sanções da ONU dependente
da China, tenha sido convidado a entrar.
Tanto para Brasil como Índia, o Brics
ampliado traz desvantagens evidentes. A perda mais óbvia é a diluição de poder
no grupo. O perigo é ser visto como — ou se tornar — coadjuvante da China.
Talvez por isso não faltaram declarações de que o Brics não é resposta ao G7,
grupo que reúne as principais potências ocidentais e o Japão. Embora os
americanos não estejam dando muita importância à ampliação, ela corresponde aos
anseios chineses.
Claro que o Brics continua a ser plataforma
útil para Brasil e Índia. Por falta de visão política, a economia brasileira
está na retaguarda global há pelo menos duas décadas. Para impulsionar o
crescimento, precisa atrair capital externo. Contatos com países como China e,
em pouco tempo, Arábia Saudita ou Emirados Árabes Unidos podem ajudar. Estar no
bloco também é sinal de distinção entre as economias emergentes e dá
visibilidade.
Mesmo para a Índia, cuja economia está em
franca expansão, o Brics é uma vitrine. O PIB indiano aumentou 71% na última
década, tem crescido em ritmo mais frenético que o chinês e deverá seguir
assim. Apesar disso, os indianos sabem que potências médias não podem
desperdiçar chances de fazer avançar seus interesses. O Brics é uma.
Quanto ao Brasil, a expansão do Brics
deveria ensinar que a realidade é como ela é, não como gostaríamos que fosse. O
presidente Luiz Inácio Lula da Silva até tentou apresentar como vitória a
entrada da caótica Argentina no bloco e uma menção no comunicado final do
encontro à necessidade de reforma na ONU. O Itamaraty continua obcecado em
obter um lugar no Conselho de Segurança. Para isso, porém, será preciso saber
fazer valer nossos trunfos — em particular na área ambiental —, em vez de
insistir nas fantasias que, à esquerda ou à direita, impediram nas últimas duas
décadas que o Brasil tivesse uma política externa capaz de projetar mais
influência.
Debate de pré-candidatos republicanos
reflete o peso de Trump no partido
O Globo
Entre oito postulantes à candidatura
presidencial, nenhum parece ter chance contra ex-presidente
Como previsto, Donald Trump não
participou do primeiro debate entre pré-candidatos a presidente pelo Partido
Republicano. A justificativa, dada pelo próprio Trump, é já ter demonstrado ser
“o melhor presidente dos Estados
Unidos”. Coube aos oito desafiantes duelar sobre temas diversos, na
tentativa de se projetar. Parecia uma disputa para saber quão trumpista era
cada republicano.
No embate na noite de quarta-feira em
Milwaukee, Wisconsin, os mais notáveis eram Nikki Haley, ex-governadora da
Carolina do Sul e embaixadora americana nas Nações Unidas em 2017 e 2018, e o
ex-vice-presidente Mike Pence, rompido com Trump por ter seguido a Constituição
e sacramentado a vitória eleitoral de Joe Biden em 6 de janeiro de 2021,
enquanto hordas de trumpistas invadiam o Capitólio. Mas quem se destacou pelo
histrionismo, pelo raciocínio rápido e pela língua ferina foi o investidor
Vivek Ramaswamy.
Nascido em Ohio há 38 anos numa família de
origem indiana, Vivek cursou ginásio em escola católica. Graduou-se em biologia
na Universidade Harvard, depois fez pós-graduação em Direito em Yale. Entre uma
faculdade e outra acumulou milhões investindo em fundos de hedge e, em 2014,
fundou sua empresa de biotecnologia, Roivant Sciences. Empreendedor, aparecia
com fortuna de US$ 630 milhões na última lista da revista Forbes.
Vivek se desdobra e usa a sua capacidade de
oratória para percorrer a mesma trilha aberta por Trump. Manifesta posições
libertárias e ao mesmo tempo conservadoras. Critica o politicamente correto
(woke) e decisões de grandes empresas que levam em conta a justiça social e
preocupações com o aquecimento global. Seu best-seller “Woke Inc.” denuncia a
influência do politicamente correto na necessidade de trabalhar duro, ter fé e
ser patriota.
O estilo e os pensamentos de Vivek começam
a aparecer nas pesquisas. Na média mantida pelo site FiveThirtyEight, Trump
ainda é líder, com preferência estável em torno de 52% do eleitorado. Mas Vivek
apresenta nítida tendência de alta. Tinha menos de 4% no início de junho, ante
23% do governador da Flórida, Ron DeSantis. Antes do debate, já aparecia com
quase 10%, enquanto DeSantis caíra para 15%. Nitidamente, DeSantis perde fôlego
no papel de desafiante de Trump.
A fidelidade de Vivek ao trumpismo ficou
patente na pressa com que ergueu o braço quando os entrevistadores perguntaram
quem defenderá Trump caso ele seja condenado (o ex-presidente enfrenta quatro
denúncias e apresentou-se ontem à Justiça na Georgia). Pence também levantou a
mão, mas discretamente, e o ex-governador de Nova Jersey Chris Christie, um
ex-trumpista, ficou imóvel. Como não se sabe o que acontecerá se Trump for
eleito e condenado, é natural que os desafiantes tentem aparecer. Vivek quer se
mostrar preparado para substituí-lo em qualquer eventualidade, mas parece
apostar mesmo em ocupar espaço num futuro governo Trump.
China começa a por Brics a serviço de seus
interesses
Valor Econômico
Com menos poder de influência, resta ao
governo Lula definir se será um ativista em um bloco agora com feições mais anti-americanas
e menos democráticas
O Brics - Brasil, Rússia, Índia, China e
África do Sul - ganhou importância internacional quando a performance econômica
de seus membros parecia estelar e projetava a possibilidade de consolidação de
novas potências que reconfigurariam a geopolítica global. Esses tempos ficaram
para trás - só China e Índia aumentaram, e muito, seu peso econômico e
político. O Brics voltou a ganhar destaque de novo quando China e EUA iniciaram
o rompimento de laços econômicos e incentivaram uma disputa em várias frentes
que ilustra o fim da hegemonia americana. A reunião do grupo em Johanesburgo mostrou
que a China é um polo de atração em um mundo multipolar e quer liderar os
países descontentes com a globalização. O Brasil será um coadjuvante, se
quiser.
O Brics foi um palco em que algumas das
maiores nações emergentes exibiam seus pontos de vista comuns (não muitos) e a
promessa de uma atuação conjunta na arena internacional - que, na prática,
ocorreu poucas vezes. Com a polarização entre China e EUA, a independência do
Brics está se tornando uma quimera. O passo mais importante tomado até agora para
o alinhamento do bloco em torno de Pequim se deu com a escolha de seis países
para ampliá-lo, anunciada ontem, ao fim do encontro.
A ampliação interessava muito à China e à
Rússia, ansiosas por ampliar o número de aliados na disputa com os EUA, mas nem
tanto ao Brasil ou à Índia (que têm fortes desavenças com Pequim). Mas não
houve oposição firme ao desejo chinês e ingressarão no grupo Arábia Saudita e
Emirados Árabes Unidos, Irã, Egito, Etiópia e Argentina. O aumento do número de
membros foi proporcional ao decréscimo do número dos que defendem o sistema
democrático. Arábia e EAU são ditaduras dinásticas e o Egito, uma ditadura
militar. A Etiópia é cliente de pesados investimentos chineses e a Argentina, à
beira da falência, pode eleger um radical direitista em outubro.
A escolha recheou o Brics de aliados da
China. Pequim já tinha feito cessar as hostilidades políticas entre os sauditas
e o Irã, em seu primeiro lance diplomático de peso no Oriente Médio, e acolheu
os iranianos no bloco, não por ser um grande produtor de petróleo, mas um rival
dos Estados Unidos, que promovem um bloqueio internacional ao país. A Arábia e
os EAU colocaram o dinheiro antes da ideologia, como sócios do banco dos Brics,
e sua escolha pareceu menos polêmica. A inclusão da Argentina foi uma deferência
ao Brasil.
Não houve qualquer explicação para a
indicação desses países como membros e não de outros entre os 22 que pleiteiam
a mesma condição. Para o assessor especial da Presidência, Celso Amorim, não há
qualquer mistério ou inversão da lógica nisso. “Primeiro você escolhe os
países, e aí depois você define os critérios”, disse em Joanesburgo. O Brasil e
os países fundadores dos Brics (exceto China) perdem peso político com a
diluição do bloco, aliás pouco usual - a quantidade de novos ingressantes é
maior do que a de membros originais.
A demonstração de força e liderança da
China, no entanto, tem seus limites nos interesses contraditórios dos países
que compõem o Brics. Em termos de atuação conjunta, os resultados até hoje
foram irrelevantes. China e Índia se encontram em lados opostos em vários temas
e têm conflitos fronteiriços. Nas negociações agrícolas na OMC, o Brasil com
frequência diverge da Índia. China e Rússia não querem perder poder no Conselho
de Segurança da ONU, não se movem para favorecer a demanda brasileira por uma
cadeira no conselho permanente e fazem apenas acenos retóricos sobre a
possibilidade. O comunicado final da cúpula faz menção a isso. “A presença de
quatro países do Brics no Conselho de Segurança da ONU proporciona uma oportunidade
para reforçar ainda mais o peso de nosso diálogo sobre questões de paz e
segurança internacionais”. Elogia o trabalho dos dois países como membros
rotativos, mas não trata da participação permanente em um Conselho de Segurança
ampliado, velho pleito de governos petistas.
O comunicado final da reunião mostra a
dupla face de China e Rússia, que não poderiam assinar os princípios
assinalados porque não os praticam. No documento, se comprometem a “garantir a
promoção e a proteção da democracia, dos direitos humanos e das liberdades
fundamentais para todos”. Outro compromisso, sancionado pela Rússia, que anexou
pedaço da Ucrânia e invadiu o país, é o de “respeitar a soberania e integridade
territorial de todos os Estados” e “a resolução pacífica de diferenças e
disputas entre países por meio do diálogo e da consulta”.
Com menos poder de influência, resta ao governo Lula definir se será um ativista em um bloco agora com feições mais anti-americanas e menos democráticas ou apenas um companheiro de viagem que buscará apoios pontuais para causas que sejam reciprocamente vantajosas. Alinhar-se automaticamente à China ou aos EUA poderá trazer prejuízos ao Brasil, que quase sempre preservou sua independência externa.
Brics+
Folha de S. Paulo
Ampliação heterodoxa do bloco fortalece
China; Brasil assume posição secundária
É conhecida a frase de Deng Xiaoping, o
líder que abriu a porta para a China transformar-se na segunda maior economia
do mundo, conforme a qual a cor do gato era irrelevante se ele fosse eficaz na
função de caça ao rato.
Tratava-se da adoção de relações
capitalistas por uma ditadura comunista —um híbrido que favoreceu a ascensão do
PIB chinês a partir dos anos 2000.
Foi naquele contexto que surgiu o Bric,
acrônimo para países cujos pontos em comum eram as vastas dimensões territoriais,
o potencial econômico e a inclinação a desafiar a hegemonia americana. A
Brasil, Rússia, Índia e China somou-se depois a África do Sul e o S do primeiro
nome do país em inglês.
Pouco de
concreto, contudo, foi levado adiante em 14 reuniões de cúpula até 2019.
Um dos poucos instrumentos reais criados, o banco hoje liderado por Dilma
Rousseff, tem sua liquidez questionada.
Mas o mundo mudou com o acirramento da
disputa entre EUA e China, a crise provocada pela Covid-19 e a invasão russa da
Ucrânia.
Ganhou força a ideia de reinvenção do
Brics, que agora culmina no anúncio
da expansão do clube a partir do convite a seis países em seu 15º encontro.
Aqui valeu a teoria de Deng, ao menos na
escolha das monarquias absolutistas da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes
Unidos, riquíssimas. Felinos mais questionáveis são a Argentina em crise, a
alquebrada Etiópia, a ditadura militar do Egito e a teocracia do Irã.
Se não importava a coloração política,
faltou definir o sentido de negócios nessas últimas escolhas. Fica bastante
difícil dissociá-las da mensagem que se pretende passar ao Ocidente liderado
pelos EUA.
Afinal, a desdolarização está na ordem do
dia, e a Rússia está em guerra contra um país armado pelo Ocidente. Os
presentes à cúpula negaram antiamericanismo e, ao fim, não romperão laços
comerciais com Washington. De todo modo, Pequim sai em posição de força.
Para o Brasil, em papel secundário
consideradas as ambições de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), pode haver
oportunidades, mas isso depende do rumo que essa versão ampliada dos Brics
tomará. Seu único tento marcado, a inclusão da Argentina no pacote, está à
mercê da sucessão presidencial no vizinho turbulento.
Fica para análise futura o caso da
emergente Índia, verdadeira equilibrista ao ser aliada dos EUA, amiga da Rússia
e rival da China ao mesmo tempo em que divide cadeira no Brics com Xi Jinping.
Entusiastas somam PIBs para vislumbrar um
bloco eficaz, mas tendem a ignorar que gatos não raro disputam o mesmo rato.
Rusga ambiental
Folha de S. Paulo
Embate sobre exploração de petróleo expõe
agendas conflitantes sob Lula
Menos de oito meses de governo e já se
reedita conflito ao estilo dos que levaram Marina Silva (Rede) a deixar o
Ministério do Meio Ambiente no segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva
(PT). Está em tela agora a recusa do Ibama a licenciar perfuração exploratória
de petróleo na margem equatorial, ao largo do Amapá.
A agência ambiental negou a licença em
maio. O Ministério de Minas e Energia solicitou então parecer à Advocacia Geral
da União sobre a legalidade da decisão, no "intuito de evitar risco à segurança
energética e à autossuficiência em petróleo adquirida com extremo esforço pelo
Brasil". A AGU, por
fim, acatou o pedido.
A argumentação é toda jurídica, mas por
trás dela parece haver divergências de princípio.
No parecer do Ibama, dez analistas
ambientais corroborados pelo presidente do órgão apontam insuficiências nas
informações da Petrobras. Entre elas, tempo excessivo de deslocamento até
eventual derramamento de óleo, para resgate da fauna, e comunicação deficiente
com comunidades indígenas.
Segundo o documento, há alta
vulnerabilidade no litoral amapaense, com manguezais de difícil acesso, e
espécies ameaçadas no setor oceânico. Em face disso, aponta a
carência de Avaliação Ambiental de Área Sedimentar (AAAS).
Esse tipo de análise, que determina a
aptidão de áreas marinhas para atividade petroleira, está prevista em portaria
interministerial de 2012, mas não tem sido posta em prática. Para não atrasar
processos iniciados, a portaria abriu brecha para que as pastas de Minas e Energia
e Ambiente permitam a outorga de blocos, como ocorreu com a área em questão.
Para a AGU, a AAAS não é precondição para
licenciamento, mas ferramenta de planejamento estratégico. Cita em seu apoio
decisão de 2021 do Supremo Tribunal Federal fixando que só o licenciamento, não
AAAS, estipula a viabilidade ambiental de empreendimentos.
Mesmo que a avaliação não seja legalmente
exigível, persistem as deficiências apontadas pelo Ibama. Mais que a pendenga
jurídica, são elas que precisam ser dirimidas, de modo eficiente e transparente
—como apontou
Marina Silva em audiência no Senado.
Cabe a Lula, ainda, desfazer a contradição —para quem se pretende referência no enfrentamento das mudanças climáticas— entre diminuir emissões de carbono com uma mão, contendo o desmatamento, e aumentá-las com outra, fomentando combustíveis fósseis.
Contra Bolsonaro, nada além da lei
O Estado de S. Paulo
Diante do modo como a Justiça tem aplicado
a prisão preventiva, no espírito do lavajatismo, não seria surpresa uma
eventual detenção. Mas a lei não autoriza antecipação de pena
Desde a semana passada, quando vieram à
tona mais indícios de eventual participação de Jair Bolsonaro em crimes –
alguns deles, com penas altas –, intensificou-se, em diversos setores da
sociedade, uma espécie de “torcida” pela prisão do ex-presidente. Diante dessa
expectativa, cabe relembrar alguns pontos sobre a prisão no Estado Democrático
de Direito.
Para muitos, a prisão de Jair Bolsonaro
seria uma simples questão de justiça: se o ex-presidente cometeu crimes, ele
tem de sofrer as devidas consequências legais. O raciocínio é claro: não cabe
impunidade a quem usa um cargo público – no caso, o mais alto posto do
Executivo federal – para delinquir.
Certamente, um ato criminoso deve ser
punido. Mas a apuração desse ato exige um processo judicial, dentro de um amplo
espaço de contraditório e com efetivo direito de defesa. A punição deve vir no
final da ação penal, e não no seu início. Até agora, nem mesmo uma denúncia
formal foi apresentada contra Jair Bolsonaro no caso das vendas das joias ou no
dos ataques contra a democracia.
Neste momento, portanto, uma eventual
prisão de Jair Bolsonaro seria necessariamente uma medida preventiva, que não é
antecipação de pena nem pode ser usada como tal. Diz a lei: “Não será admitida
a decretação da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de
cumprimento de pena ou como decorrência imediata de investigação criminal ou da
apresentação ou recebimento de denúncia” (art. 313, § 2.º, Código de Processo
Penal, CPP). Ou seja, nas atuais circunstâncias, não é válido o raciocínio de
que, por ter cometido crimes, o ex-presidente deveria ser preso agora. A prisão
como pena exige decisão transitada em julgado e não há sequer processo criminal
contra o ex-presidente.
A respeito da prisão preventiva, a
legislação brasileira tem requisitos bem definidos. A medida cautelar poderá
ser decretada “como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por
conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal,
quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de
perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado” (art. 312, CPP).
A redação atual desses dois dispositivos do
CPP foi fruto da Lei 13.964/2019, o chamado Pacote Anticrime. Essas mudanças
integram o esforço do Congresso em melhorar a efetividade do princípio da
presunção de inocência, bem como das liberdades fundamentais de todos os
cidadãos. Por isso, a Lei 13.964/2019 estabeleceu que “a decisão que decretar,
substituir ou denegar a prisão preventiva será sempre motivada e fundamentada”
(art. 315, CPP).
Infelizmente, muitos juízes e tribunais
ainda trabalham com uma compreensão excessivamente ampla a respeito de seus
poderes para decretar a prisão preventiva, compreensão esta que, contrariando a
legislação vigente, viola a liberdade de muitos cidadãos. Não há dúvida, por
exemplo, que, fosse aplicado o entendimento da Lava Jato sobre a prisão
preventiva, Jair Bolsonaro já estaria preso preventivamente.
O caminho, no entanto, não é errar de novo,
numa espécie de vingança. Tal atitude apenas geraria novos problemas, e o papel
do Judiciário é aplicar a lei de modo a solucionar – e não aumentar – os
conflitos sociais. Em vez de aplicar antigas e ilegais concepções sobre a
prisão preventiva, as atuais circunstâncias envolvendo Jair Bolsonaro devem
conduzir a um amadurecimento de toda a Justiça sobre o tema, em conformidade
com o que dispõe a lei.
Nesse sentido, um ponto de melhoria do
Judiciário perfeitamente acessível é a aplicação prioritária das medidas
cautelares diversas da prisão. “A prisão preventiva somente será determinada
quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar” (art. 282,
§ 6.º, CPP). Hoje, muitas prisões preventivas são ilegais, tendo em vista que
poderiam ser substituídas por outra medida cautelar, como a proibição de
ausentar-se da comarca ou a monitoração eletrônica.
A melhor defesa da democracia e da
sociedade é a aplicação da lei. Sem exceções para favorecer ou para perseguir.
Teto não resolve reforma tributária
O Estado de S. Paulo
Não basta impor alíquota máxima para o IVA
e esperar que funcione como num passe de mágica. Se quiser limitar a carga
tributária, Senado terá de reduzir a lista de setores privilegiados
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco
(PSDMG), disse ser favorável à inclusão de um teto de 25% para a alíquota do
novo imposto sobre bens e serviços. Embora não haja uma decisão final sobre
incluir essa proposta no texto da reforma tributária, ela parece estar em um
estágio relativamente avançado, a ponto de o relator, Eduardo Braga (MDB-AM),
já se referir a ela por meio de um neologismo. Segundo Pacheco, Braga tem dito
que pretende “tetar” a reforma.
O padrinho dessa sugestão é o presidente da
Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Josué Gomes da Silva.
“A indústria não quer exceção. Só quer que a alíquota máxima se situe no
patamar de 25%”, afirmou Josué, em um debate promovido pela própria Fiesp e
pelo Esfera, grupo que reúne empresários, empreendedores e o setor produtivo.
O porcentual mencionado pelo industrial não
foi escolhido por acaso. Um estudo do Ministério da Fazenda, ao qual o Senado
já teve acesso, mostrou que a reforma, da forma como foi aprovada na Câmara,
exigirá que o novo imposto tenha uma alíquota de 25,45% a 27%. Neste patamar, o
Brasil, ao lado da Hungria, estaria entre os países com a maior tributação
sobre consumo do mundo, segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE).
É evidente que ninguém gostaria que o País
liderasse esse ranking, mas não é a imposição de um teto máximo para o Imposto
sobre Valor Agregado (IVA) que resolverá a questão. A alíquota calculada pelo
estudo do Ministério da Fazenda é simplesmente o reflexo de todas as exceções
aprovadas durante a tramitação da reforma tributária na Câmara. Como a
neutralidade é premissa da reforma, ou seja, a arrecadação total de tributos
sobre consumo será mantida, cada segmento que conquista tratamento especial
onera todos os demais.
Para garantir o apoio dos parlamentares ao
texto, o governo já havia se comprometido a manter a vigência do Simples
Nacional e da Zona Franca de Manaus. Os deputados, no entanto, incluíram
agronegócio, educação e saúde privadas, transporte público e até bares entre os
beneficiados. Além disso, ampliaram o desconto a que os setores contemplados
teriam direito de 50% para 60% da alíquota cheia e mantiveram a isenção para
itens da cesta básica – benefício que, na proposta original, só valeria para
famílias de baixa renda.
A consequência dessas escolhas não poderia
ser outra: a alíquota cheia do IVA teve de aumentar para bancá-las. Logo, se o
objetivo é reduzir a carga tributária, não basta impor uma alíquota máxima para
o IVA e esperar que funcione como num passe de mágica. Neste caso, a ordem dos
fatores altera o produto e compromete o resultado final.
Há outra forma de colocar o teto de 25% em
prática, mas ela requer muito mais trabalho e coragem dos senadores no
enfrentamento dos lobbies e de seus privilégios. Até o momento, no entanto, não
parece ser essa a intenção do Senado. Atuando em prol de sua própria categoria
profissional, Pacheco sinalizou ser favorável a garantir um tratamento especial
para profissionais liberais, especialmente advogados que atuam como empresas e
faturam valores superiores aos amplos e generosos limites do Simples Nacional.
A proposta do teto padece ainda de
problemas conceituais, como destacou o secretário extraordinário da Reforma
Tributária no Ministério da Fazenda, Bernard Appy, também presente no debate
promovido pela Fiesp e o Esfera. Uma vez que o IVA será dual, com uma parcela
administrada pela União e outra por Estados e municípios, sobre qual delas o
teto seria aplicado? Se for sobre a primeira, ela ampliará o déficit primário
do governo; se for sobre a segunda, desrespeitará a autonomia dos entes
federativos.
Os senadores fariam um bem à sociedade se
desconsiderassem a proposta do teto para o imposto e discutissem seriamente os
custos e os benefícios de conceder tratamento privilegiado a diversos setores
de forma indiscriminada. Práticas como essa formaram os pilares de um sistema
que ganhou o apelido de manicômio tributário. Chegou o momento de abandoná-las
de vez.
A falsa austeridade do Legislativo
O Estado de S. Paulo
Câmara aprova reajuste do salário mínimo,
mas se recusa a taxar paraísos fiscais e fundos de super-ricos
O Congresso aprovou a medida provisória
(MP) que reajusta o salário mínimo e cria uma política de valorização
permanente do piso. A proposta já estava em vigor desde 1.º de maio, mas foi
aprovada dias antes de perder validade. A ela, o governo agregou a atualização
da tabela do Imposto de Renda das Pessoas Físicas (IRPF), assunto que estava em
outra medida provisória cujo prazo de vigência também estava prestes a se
encerrar. No Legislativo, não havia qualquer resistência a quaisquer dos temas.
Segurar a tramitação das MPs foi apenas uma estratégia dos deputados do Centrão
para mostrar sua força.
Do governo federal, a Câmara cobra a fatura
dos cargos prometidos na reforma ministerial após a aprovação de projetos da
agenda econômica no primeiro semestre do ano. Os deputados aproveitaram também
para desafiar o Senado – e a própria Constituição – no imbróglio sobre as
comissões mistas de medidas provisórias. Protelar a tramitação de MPs tem sido
uma estratégia eficiente para limitar o poder dos senadores e ampliar o da
Câmara. Como as MPs caducariam na próxima semana, o Senado não queria ter de
assumir sozinho o desgaste político de rejeitá-las.
Disputas políticas entre o Executivo e o
Legislativo ou entre a Câmara e o Senado são comuns e até naturais. O problema
é quando esses embates ultrapassam os limites do razoável e ignoram a lei, como
ocorreu nesta semana.
O reajuste do salário mínimo tem forte
impacto nas contas públicas, assim como a atualização da tabela do Imposto de
Renda. E, como determinam a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Lei de
Diretrizes Orçamentárias, esses aumentos de gastos gerariam perdas que
precisariam ser compensadas, seja por aumento de receitas, seja por
contingenciamento de gastos na mesma proporção.
Da forma como a MP foi aprovada no
Legislativo, no entanto, apenas os gastos foram garantidos, e as receitas
ficaram para depois. Os parlamentares se recusaram a aprovar a emenda com a
taxação dos fundos offshore, item que também estava na MP da atualização da
tabela do Imposto de Renda justamente para compensar as perdas de arrecadação
associadas a ela.
O presidente da Câmara, Arthur Lira
(PP-AL), chegou a classificar a tributação dos fundos offshore como o maior
jabuti da história recente, como se a intenção de taxar o dinheiro investido em
paraísos fiscais fosse uma completa surpresa. Encurralado, o Executivo teve de
recuar e enviar um novo projeto de lei com o mesmo tema, dando ao Congresso
mais tempo – talvez infinito – para debatê-lo.
Eis a austeridade fiscal dos parlamentares posta à prova. Também ficou para depois o envio de uma medida provisória para taxar os fundos exclusivos, veículos de investimento dos super-ricos com patrimônio superior a R$ 10 milhões. Ao contrário de aplicações semelhantes, esses fundos estão isentos da tributação semestral conhecida como come-cotas. Taxá-los, portanto, mais do que uma medida arrecadatória, seria uma questão de isonomia e uma maneira de reverter a regressividade que ainda caracteriza o injusto sistema tributário do País.
A gamificação do mundo
Correio Braziliense
A indústria de games já movimenta R$ 12
bilhões ao ano no Brasil, o que o posiciona na liderança em receita no setor na
América Latina e no 13º lugar no ranking mundial
O mercado do entretenimento é uma mina de
ouro no Brasil. Na onda tecnológica, a indústria de games já movimenta R$ 12
bilhões ao ano no país, o que o posiciona na liderança em receita no setor na
América Latina e no 13º lugar no ranking mundial. Segundo as projeções da PwC,
a expectativa é de que as cifras globais alcancem US$ 321 bilhões até 2026. Em
2022, esse montante foi de US$ 196,8 bilhões.
Diante de um público vasto e diverso, caracterizado pelo equilíbrio entre
determinadas faixas etárias de gamers, há dados muito curiosos.
Segundo a Pesquisa Game Brasil 2022, as mulheres
são maioria entre o público gamer, representando 51%. A principal faixa etária
é de 25 a 34 anos (25,5%), seguida por jovens de 16 a 24 anos (17,7%). Mas
pessoas mais velhas – entre 30 e 34 anos (12,9% dos jogadores) e entre 35 e 39
anos (11,2% do total) – também não ficam atrás, o que demonstra um certo
equilíbrio entre adultos acima dos 30 aos 39 anos.
Outra informação importante é que o negócio
de games tem ampliado sua área de atuação. Não se limita apenas a
multinacionais de softwares ou áreas afins. Um dos maiores clubes de assinatura
de vinhos do mundo, líder no ranking de importação no Brasil, anunciou
recentemente o lançamento do Wine Games em lojas físicas em 16 unidades da
marca. Inovação, disrupção, entretenimento, curiosidade e interação são alguns
dos adjetivos para anunciar a novidade.
Para quem pensa que os “sessentões” estão
afastados da gamificação do mundo, os idosos estão se aproximando cada vez mais
do mundo dos jogos. Mais digitalizados, o número de gamers com mais de 60 anos
é de 21% em todo o mundo (Euromonitor).
Maior que o cinema, que streamings de vídeo
e de música, o investimento na indústria de jogos eletrônicos continua a
crescer e a atrair investidores dos mais diversos setores ao redor do mundo.
Não à toa, sites como Americanas, Amazon e Mercado Livre registram milhares de
vendas todos os dias – somente no segmento de games. Os aficionados ganharam
até uma data comemorativa: na próxima terça-feira (29) é o Dia Internacional do
Gamer.
Além de meio de diversão, estamos falando
de um segmento que se profissionalizou, com jogadores ganhando dinheiro (e
muito) e competições que se transformam em grandiosos eventos. A despeito das
polêmicas sobre o uso excessivo de eletrônicos no ambiente familiar e escolar e
se jogos digitais podem ser considerados modalidade esportiva, com
possibilidade de receber verbas públicas como incentivo, por exemplo, é
incontestável o avanço da indústria. É irreversível.
Fato é que o mundo agora é digital, assim como tem sido os hábitos, os
consumidores e as transações. Vide a dificuldade do comércio em encontrar
cédulas, “dinheiro vivo” na praça, engolido pelos cartões de crédito e pelos
atuais Pix. É nessa evolução tecnológico que se incluem os games. E se
pensarmos que esse mundo começou bem lá atrás, na década de 1970, mais
exatamente em 1972, com o Pong, aquele jogo que aparecia na TV com dois
adversários e uma tela que representava uma quadra. Dois tracinhos, cada um de
um lado e uma bolinha, que ficava para lá e para cá. Evoluímos muito. Que
venham as próximas décadas.
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