sexta-feira, 25 de agosto de 2023

José de Souza Martins* - CPI do MST, o avesso

Eu & Valor Econômico

João Pedro Stédile falou com serenidade e didatismo. Pacientemente desmontou todo o elenco de falsos conceitos, expôs as funções socialmente inovadoras do movimento

A CPI do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), na Câmara dos Deputados, vem fazendo revelações do maior interesse político. Sobretudo em consequência dos equívocos que a motivam e da desinformação de quem a propôs e defende.

Na medida em que fica evidente que o propósito é criminalizar o MST e questionar a legalidade da reforma agrária, fica claro, também, que inevitavelmente foi posta em julgamento a legitimidade da própria definição que do agronegócio fazem alguns de seus membros. O que revela a imprudência e mesmo a incompetência das facções que resolveram usar a CPI para impugnar a demanda histórica de terra de trabalho dos trabalhadores do campo.

As sociedades são relacionais, baseiam-se na reciprocidade de sentido própria da interação social, mesmo no caso de grupos polarizados por interesses antagônicos, como neste caso. O latifúndio e a economia rentista, que dele se nutre, que não é todo o agronegócio, mandou para a guerra parlamentar um exército de incompetentes. Desconhecem o assunto e não sabem que sua fragilidade ideológica revelaria sua verdadeira identidade, a de inimigos do capitalismo e do agronegócio.

Apresentaram-se munidos de um armamento ideológico impróprio para o que se revelaria a defesa das iniquidades sociais do latifundismo brasileiro. Desconhecem tudo, desde os valores sociais que legitimam o direito de propriedade da terra numa sociedade como esta e até os diferentes modos sociais de lidar com ela e mesmo que a Constituição de 1988 reconhece a legitimidade e a legalidade da diversidade de direitos de propriedade no Brasil. Desde o que nos vem do regime sesmarial até as formas socialmente residuais do nosso passado. Que se materializam na agricultura familiar e no caráter comunitário da sociabilidade dos que a ela se dedicam.

O Brasil aliás, tem várias tradições de sucessão no direito de propriedade que não correspondem ao que está previsto nos códigos e leis. Atendem, antes, aos valores da organização da família e do parentesco, mais amplos e complexos dos que os reconhecidos pelos que querem julgar a legitimidade de procedência dos movimentos sociais dedicados a defender essas tradições.

Se em vez de seguir ideias antropologicamente equivocadas quanto ao pensamento de Antonio Gramsci, e conhecessem o pensamento gramsciano e a antropologia nele inspirada, como a de Ernesto De Martino e a de Luigi Lombardi Satriani, ficariam menos expostos à crítica simples e densa de testemunhas como João Pedro Stédile, figura simbólica da história do MST.

Curiosamente, essa complexidade foi levada em conta na busca de uma solução para a questão agrária, nas providências e cuidados que revestissem o direito de propriedade do reconhecimento das limitações históricas que tem.

O último ministro Extraordinário de Assuntos Fundiários, do Brasil, no regime militar, o general Danilo Venturini, providenciou a organização de uma coletânea dos 500 anos de legislação fundiária brasileira, em vários volumes.

Nela é o trabalho e a posse útil a base da propriedade fundiária. Essa regra passaria a nortear as decisões da Justiça, nas pendências, em decisões já de juízes de primeiro grau. Vazada a informação da solução que o regime legaria ao novo regime da abertura política, foi ela obstada na Câmara dos Deputados.

João Pedro Stédile falou com serenidade e didatismo. Pacientemente desmontou todo o elenco de falsos conceitos relativos ao MST, expôs as funções socialmente inovadoras do movimento. Não aceitou provocação. Mostrou a todos que um movimento social como o MST é legítima e criativa manifestação de soluções para as necessidades sociais criadas nas vítimas da problemática, descabida e não raro ilegal concentração fundiária. Antipatriótica, aliás, porque cria enclaves territoriais que representam ameaça ao cumprimento das leis do país, e de sua fiscalização, e à própria segurança nacional.

O esbulho de terra e territórios oriundos dos direitos das populações originárias e dos decorrentes do reconhecimento constitucional da função social da propriedade é o que os movimentos sociais combatem. Nesse embate, o confronto é entre terra social de trabalho e terra de especulação.

Os autores e defensores do caráter criminalizante da CPI do MST têm uma concepção muito superficial da questão agrária, embaralham conceitos, interpretam ocupação de terra vocacionada, devoluta ou impropriamente utilizada, para a reforma agrária, com invasão. Terra de reforma agrária não é confisco, pois devidamente indenizada. Grandes proprietários de terra chegam a recorrer ao governo para pedir, eles próprios, a desapropriação de suas terras, um negócio lucrativo como outro qualquer.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp, 2021).

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