Folha de S. Paulo
O aparelho banaliza a imagem por sua
instantaneidade, de maneira irresistível para a maioria, jovens em especial
Muitos anos atrás, uma pesquisa sobre televisão indagava a adolescentes cariocas o que mais gostariam de ver na telinha. "Eu", respondeu um deles. Na mesma época, parecia divertida a anedota da mãe zelosa que, passeando no parque com o bebê, escuta de uma outra o elogio: "que lindo, o seu filho". E ela responde: "Você ainda não viu a foto".
As duas pequenas histórias mantêm atualidade
explicativa na época do celular
e redes sociais. Após a crescente proibição
do uso de celulares nas escolas, aparecem notícias de adolescentes que os
substituem por velhas câmeras digitais, naturalmente permitidas. Com elas,
podem copiar trechos de textos e, mais do que tudo, fazer selfies. É o círculo
vicioso do espelho, a compulsão de se reproduzir infinitamente em imagem.
Os episódios são variantes de um fenômeno que
se pode chamar de espectralização. Não se trata apenas de fazer pose
conveniente para uma foto, gesto instintivo quando se é alvo de uma câmera, e
sim de criar um espectro de si mesmo, isto é, a ficção de uma personalidade
paralela capaz de circular em situações de comunicação diversas. Nesse duplo
espectral, que é de algum modo o negativo da visibilidade comunitária, o
pretenso ser real e único dá lugar à sutil simulação de um personagem.
O celular banaliza a imagem por
instantaneidade e ausência de custos, de maneira irresistível para a maioria,
jovens em especial. Não se trata, porém, de efeito exclusivo do artefato. A
raiz atrativa está na paixão pela autoimagem, daí a produção do espectro
individual, um
modo de existir na realidade virtual criada pela rede eletrônica e
pelas máquinas de visão, que não param de surgir. É uma forma de vida paralela,
ainda mal compreendida, mas já nomeada pelo antigo grego como "bios".
São fortes as consequências na formação da
personalidade. E costumam enganar cientistas atentos a mudanças sociais apenas
por aspectos fisicamente observáveis. Mal se dão conta do universo imaterial
sobreposto ao real-histórico com outra linguagem, feita de códigos digitais e
figurativos. Notável é o impacto sobre o psiquismo plástico, senão enigmático,
do adolescente. É esse o fio dramático de "Adolescência",
série televisiva sobre a assustadora captura de uma consciência ainda púbere pela
realidade dúbia e sombria do celular.
Já no filme
"Emília Perez", a protagonista transgênero reflete que "há
sempre dois: meu eu verdadeiro e o animal que me segue como uma sombra".
"Animal" é metáfora para a contraparte obscura da alma. Nas redes,
entretanto, animalidade ou bestialidade (racismo, misoginia, sociopatia)
torna-se vetor de um regime de epidemia moral suscetível de abalar a
estabilidade do laço social. Infecciosa é a irrupção de formações perversas,
inequívocas reações a dificuldades afetivas no mundo real.
A "machosfera"
é um exemplo: agregado de ideias e emoções confusas sobre o feminino, com
efeitos de ressentimento e ódio. Danosa à consciência adulta, é uma usina de
monstros juvenis. O cômodo e útil celular é também máquina de morte. Olho vivo,
pais e educadores.
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