Folha de S. Paulo
Valendo-se da capacidade coercitiva e do
poderio financeiro, acrescenta outra dimensão aos processos de erosão
democrática promovidos por populistas
Cientista político, professor da FGV-Eaesp,
pesquisador do Centro de Política e Economia do Setor Público (Cepesp-FGV) e
bolsista de produtividade do CNPq
O segundo governo de Donald Trump trata
de forma peculiar atores políticos e sociais, como governos locais,
universidades e escritórios de advocacia: submete-os à extorsão
sistemática.
Se não se curvarem a seus caprichos e diretrizes, pune-os severamente, abusando dos poderes presidenciais, algo certamente inconstitucional. Porém, a estratégia de não ceder à extorsão, enfrentando o presidente nas cortes, é demasiado custosa. Leva muito tempo, com prejuízos imediatos irrecuperáveis e ameaças à própria sobrevivência.
Veja-se o caso da cidade de Washington,
capital do país. Trump a achacou, ameaçando-a com grandes cortes de recursos
caso a prefeita Muriel Bowser não removesse
a inscrição "Black Lives Matter" do pavimento de uma praça.
Segundo o republicano, a expressão seria "símbolo de ódio". Diante do
risco de penúria, a prefeita —negra e democrata— curvou-se ao capricho
presidencial. Justificou sua sujeição assim: "Agora nosso foco é garantir
que nossos moradores e nossa economia sobrevivam".
A situação é mesmo crítica, pois as finanças
de Washington são ameaçadas também pelo risco de 40 mil residentes perderem o
emprego devido a cortes de pessoal promovidos pelo governo federal. Isso se
confirmando, menos gente poderá pagar impostos e consumir na capital do país,
minando a arrecadação local.
Outra frente de ataque são as grandes
universidades americanas, que correm três riscos significativos quanto a
seu financiamento. Um, o aumento de 1,4% para 21% na taxação sobre ganhos
advindos de seus fundos. Outro, a limitação do montante desses fundos: de US$
500 mil por estudante para apenas US$ 200 mil, definhando a base do
autofinanciamento. Por fim, o puro e simples corte de verbas federais
necessárias para diversas atividades acadêmicas, em particular a pesquisa
científica.
Tais iniciativas visam esmagar princípios e
práticas progressistas vigentes nas universidades. Tom Cotton, senador
republicano do Arkansas, afirmou no X: "Nossas universidades de elite
precisam saber o custo de promover agendas antiamericanas e pró-terroristas".
Chama atenção o termo "antiamericanas": evoca o Comitê de Ações
Antiamericanas da Câmara e sua perseguição a supostos comunistas nos anos 1950,
associadamente a Joseph McCarthy no Senado. Ou seja, o macarthismo ressurge em
nova roupagem e com escopo ampliado.
O estrangulamento financeiro das
universidades visa submetê-las à agenda reacionária do trumpismo. No caso de
Columbia, a sujeição chega ao ponto de a universidade permitir
ao governo nomear o chefe do departamento de estudos do Oriente Médio,
escrutinando o currículo e seus professores, avaliando se os deve manter ou
demitir.
Um terceiro alvo do presidente dos EUA são
escritórios de advocacia que recentemente o enfrentaram na Justiça. Dois
deles, Perkins Coie e Paul Weiss, foram nominalmente citados em
ordens executivas (tipo de decreto presidencial com força de lei)
especificamente editadas para inviabilizar seu trabalho junto a órgãos
governamentais. Em decorrência de tais atos normativos, os dois escritórios
sofreram uma sangria de clientes, que não teriam como ser representados. O Paul
Weiss rapidamente negociou com o presidente, sujeitando-se a seus termos e lhe
oferecendo serviços "pro bono" (sic) no valor de US$ 40 milhões.
A terrível novidade é que a extorsão não é
mero instrumento para a obtenção ilícita de ganhos pontuais, como
propinas. Trata-se
de exercício imediato do poder para a sujeição política dos demais
atores. Ou seja, torna-se a própria forma de governo —uma
"extorsocracia", ou "ekviasmocracia", considerando o termo
grego para extorsão, "ekviasmos".
Donald Trump requinta e acrescenta
nova dimensão aos processos de erosão democrática promovidos por
governantes populistas. Valendo-se da capacidade coercitiva do Estado e de seu
poderio financeiro, achaca governos subnacionais, entes da sociedade civil e
empresas, minando sua autonomia. Desse modo, pouco a pouco, instaura um governo
autoritário na mais antiga democracia do mundo.
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