O Estado de S. Paulo
Nessa ‘cruzada’, seus companheiros de luta
seriam Irã, Venezuela, Síria, Nicarágua, Coreia do Norte, Bielorrússia e, de
maneira mais cautelosa, a China
Qual seria o limite de Putin, uma vez
estabelecido um cessar-fogo, patrocinado pelos EUA? Contentar-se-ia ele com a
conquista de 20% do território ucraniano ou com o compromisso de que esse país
não ingressaria na Otan?
Considerando a história russa, os comprometimentos de Putin e a ideologia eurasiana à qual adere, a resposta talvez fosse: acordos diplomáticos, por si sós, não limitam um país que se baseia numa concepção de mundo, e europeia em particular, expansionista. Uma conquista territorial, por mais importante que seja, não é suficiente, embora uma contenção possa surgir do fato de que a força militar russa se mostrou incapaz de uma vitória total – conquistando toda a Ucrânia, como era o seu projeto geopolítico. A sua aparência e narrativa não corresponderam à sua atuação no campo de batalha.
A Grande Nação Russa teria pretensões
hegemônicas não apenas sobre a Ucrânia, mas também sobre os Países Bálticos e a
Polônia, um tal projeto se escalonando no tempo, via preparação meticulosa,
sobretudo na indústria de Defesa e no aprimoramento de suas Forças Armadas,
aprendendo com seus erros recentes. A instabilidade e a insegurança se
instalariam no longo prazo. No caso da Polônia, note-se, a contenção não seria
diplomática, mas militar, visto que esse país, em 2024, gastou 4,2% de seu PIB
em suas Forças Armadas e em seu rearmamento, já tendo alcançado em 2025 4,9%, o
maior da Europa.
Putin oscilou, durante sua carreira política
no Kremlin, entre o polo ocidental e o que se denomina eurasiano, tendo sido,
num determinado momento, pró-ocidental, aproximando-se de Tony Blair e George
W. Bush. Depois, tornou-se um defensor dos valores russos, da Igreja Ortodoxa e
da Grande Rússia, que deveria ser resgatada, após o colapso – para ele uma
“catástrofe geopolítica” – da União Soviética, quando teria perdido vários
países, entre os quais a Ucrânia e os Países Bálticos. Um império colapsou, o
outro teria, agora, de ser recriado, e por ele.
Em 2003, durante uma viagem à Escócia, chegou
a declarar que a “Rússia é parte da Europa”. Em 2008, declarou a Bush que “a
Ucrânia não é sequer um país”, por ela fazer parte da Rússia, em todo caso a
Crimeia e as regiões do Leste. No mesmo ano, já estava totalmente convertido à
doutrina eurasiana, eslavofista. Numa reunião com o então vice-presidente Joe
Biden, teria dito: “Não somente ilusões (...) nós não somos como vocês. Só
parecemos com vocês. Mas somos muito diferentes. Os russos e os
norte-americanos só se parecem fisicamente, mas nossos valores são muito
diferentes”.
Alexander Dugin, seu ideólogo, elaborou essa
concepção. Segundo ele, a Rússia não é apenas um país, mas uma nação, leia-se
uma civilização, com alma própria, em tudo distinta da ocidental. Sua filosofia
seria conservadora, no sentido de conservação de seus valores, enraizados em
seu povo ( narod), portador, por sua vez, de um ser próprio, o do camponês
russo, em tudo distinto da concepção ocidental do povo, baseada nos direitos
universais do cidadão. O homem não é indivíduo livre, mas membro de uma comunidade
à qual presta obediência.
O conceito de conservadorismo, assim
entendido, inclui em sua significação a noção de algo grandioso, de valores
próprios que se alçariam a seu Zenith por meio da noção do homo maximus, tendo
como resultado a noção de Império. Império vem a significar uma unidade
territorial, um Estado em expansão, conduzido por um grande homem, capaz de
encarnar esses valores máximos, levando-os para além de suas fronteiras. E,
mais ainda, para seus territórios vizinhos como a Ucrânia, considerado um país
artificial, ou os Países Bálticos, o que equivale a dizer que deveriam ser
incorporados à Grande Rússia. Logo, Império não é somente uma entidade
política, mas “religiosa”, imbuída de uma missão civilizatória.
“Conservadores são raramente pacifistas”,
escreve ele.
Eles estão voltados para a guerra, não
somente por uma necessidade geopolítica, mas religiosa. Trata-se de uma
expansão ideologicamente fundada, uma espécie de necessidade da alma russa, dos
valores de seu narod, corretamente interpretados por sua liderança política. Um
povo que não se engaja numa guerra é um povo que decai, podendo vir a perder a
sua alma. Um povo carente de alma nem mereceria existir.
Em seu antiocidentalismo, Dugin propõe uma
guerra sem quartel contra o universalismo ocidental, sua noção de direitos, seu
conceito de autodeterminação dos povos e os seus representantes políticos. Seu
alvo são os liberais identificados aos inimigos. Comunistas e não comunistas
antiocidentais se unem contra o inimigo comum, Putin e Dugin colocando-se em
linha de continuidade com a União Soviética, em sua cruzada antidemocrática.
Nesta sua cruzada, seus companheiros de luta seriam Irã, Venezuela, Síria (naquele
então sob o jugo da família Assad), Nicarágua, Coreia do Norte e Bielorrússia,
e, de maneira mais cautelosa, a China.
Eis o mundo reconfigurado na perspectiva
russa!
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