Folha de S. Paulo
[RESUMO] Autor, ministro no primeiro
governo FHC, qualifica como marxistas neoliberais os líderes do seminário de
"O Capital", objeto de estudo do sociólogo Fábio Mascaro Querido em
livro recente. Para Bresser-Pereira, FHC e intelectuais de seu entorno elegeram
o desenvolvimentismo como adversário e abandonaram o marxismo ainda nos anos
1970 para, na década de 1990, se tornarem neoliberais, se associarem ao império
e levarem a economia brasileira ao estado de quase estagnação.
Fábio Mascaro Querido acaba de publicar
"Lugar
Periférico, Ideias Modernas", no qual estuda o que denomina marxismo
acadêmico da USP —um grupo de sociólogos que, nos anos 1960, se aproximou do
marxismo, que havia emergido com força na Europa no pós-guerra e alcançado o
Brasil.
Esses sociólogos, sob a liderança de Fernando
Henrique Cardoso, criaram um seminário para estudar Marx e "O
Capital". Quando Cardoso assumiu a Presidência em 1995, o seminário se
tornou célebre, sempre citado pela imprensa conservadora de maneira simpática
porque os autores envolvidos já haviam abandonado havia tempos o marxismo.
Querido afirma que esse foi o mito fundador do grupo.
O núcleo do grupo —aqueles que proponho
chamar de marxistas neoliberais— foi constituído por Fernando Henrique
Cardoso, José
Arthur Giannotti e Francisco
Weffort.
Trata-se de um oximoro que se aplica bem a eles, que se encantaram com o marxismo nos anos 1960, quando ainda estava viva a esperança na revolução socialista, tornaram esse marxismo menos contraditório e revolucionário, definiram o desenvolvimentismo como o adversário e abandonaram o marxismo já nos anos 1970, enquanto Cardoso desenvolvia a teoria da dependência associada, que implicou a subordinação do Brasil ao império. Em síntese, nos anos 1960, eles supunham ser marxistas mas já eram liberais; nos anos 1990, se tornaram neoliberais.
A denominação marxismo neoliberal
naturalmente não se aplica a Roberto
Schwarz e Francisco
de Oliveira, que eram do grupo, nem a Octavio Ianni e
Florestan Fernandes, que não eram realmente do grupo.
Florestan foi o mestre de todos, o maior
sociólogo que a USP já teve. Inicialmente, se associou à sociologia da
modernização e, depois, indignado com o que via no Brasil, se tornou um
marxista revolucionário. Querido, naturalmente, não usa essa expressão, porque
ele era antes um admirador que um crítico do marxismo neoliberal.
Querido distingue Roberto Schwarz dos demais,
alguém que permaneceu marxista ao longo dos anos e, como escreve,
"radicalizou a dimensão 'negativa' da crítica". Como crítico
literário e escritor, Schwarz não se preocupou em propor políticas nem fez
concessões para ser aceito no seu entorno. Ao contrário do núcleo duro do
grupo, Schwarz continuou nacionalista como havia sido antes dele seu grande
mestre, Antonio
Candido, e se associou a Paulo Arantes, um crítico do marxismo neoliberal.
Entre todos, Schwarz é o único que, no plano
teórico, é reconhecido internacionalmente. (A teoria da dependência associada
teve repercussão internacional, mas, além de ser equivocada, não pode ser
considerada uma teoria —é apenas uma sofisticada e pouco clara justificação de
subordinação.)
Querido usou o pensamento de Schwarz como
referência ou fio condutor do livro e lhe dedicou dois excelentes capítulos.
Salientou o amplo papel que teve Adorno em seu pensamento, como também a
crítica da modernização realizada por Robert Kurz em 1991, um momento em que a
União Soviética entrava em colapso.
Querido deu pouca importância ao nacionalismo
do crítico, o que contradiz a sua perspectiva negativa, mas, no final do
segundo ensaio, cita um texto significativo: "A última palavra não pertence
à nação, nem à hegemonia ideológica internacional, mas pertence ao presente
conflituado que as atravessa". Este presente conflituado é o da luta de
classes dos grupos de interesse específicos para esse ou aquele problema.
Nos anos 1960 e 1970, o núcleo neoliberal
marxista e, mais amplamente, a esquerda antivarguista combateram o
desenvolvimentismo nacionalista porque pretendiam ser revolucionários, enquanto
o desenvolvimentismo implicava um compromisso da classe trabalhadora e da
esquerda social-democrata com a burguesia.
O núcleo acadêmico neoliberal marxista seguiu
o mesmo caminho: ao contrário da visão desenvolvimentista, pretendia não fazer
concessões e acabou concedendo tudo nos anos 1990, quando se tornou neoliberal.
A esquerda anti-Vargas o combateu porque definiu um "culpado interno"
pela derrota: haviam sido os desenvolvimentistas, que, em vez de serem
revolucionários, haviam apostado em um acordo da classe trabalhadora com a
burguesia industrial intermediado pela burocracia pública.
O núcleo só passou a ter alguma relevância a
partir do golpe militar de 1964, a grande derrota da social-democracia
desenvolvimentista. Derrotados os adversários sem que fosse preciso lutar
contra eles, estava agora na hora dos sociólogos da USP assumirem o comando
intelectual da esquerda.
No capítulo "A revanche dos
paulistas", Querido relata a nova fase. Revanche por quê? Ele não explica,
porque não foi realmente uma revanche. Na partida anterior, nossos amigos não
tinham sido derrotados: eles estavam simplesmente fora do jogo. Em 1964,
entraram no jogo e se tornaram bem conhecidos. Os que estavam no jogo até então
eram os nacional-desenvolvimentistas social-democratas como Celso
Furtado, Guerreiro
Ramos, Helio
Jaguaribe e Ignácio
Rangel. Na época, eu já era desenvolvimentista, discípulo dos últimos.
Eles estavam fora do jogo, mas desesperados
para entrar, especialmente para derrotar os dois mais importantes sociólogos
dos anos 1950, Guerreiro Ramos e Gilberto Freyre.
O golpe militar se encarregou de derrotar Guerreiro ao cassar seu mandato de
deputado federal e seu direito de se recandidatar. Enquanto Celso Furtado foi
exilado, ele e seus companheiros do Iseb (Instituto Superior de Estudos
Brasileiros) Jaguaribe e Rangel foram submetidos a intenso ataque pela esquerda
alienada, para a qual o nacional-desenvolvimentismo associado a Getúlio
Vargas era inaceitável. Isto além do ataque pela direita.
O próximo passo foi o livro de Cardoso e Enzo
Faletto, "Dependência e Desenvolvimento na América Latina" (1969), no
qual a dependência se torna a causa do desenvolvimento, em vez de obstáculo.
Era a teoria da dependência associada que surgia. A nova verdade, que se
espalhou rapidamente por toda a esquerda intelectual, afirmava taxativamente
que uma coalizão de classes desenvolvimentista associando os empresários
industriais às esquerdas e à classe trabalhadora era impossível.
A burguesia não existia nem poderia existir
(na verdade, a burguesia industrial desenvolvimentista existiu no Brasil em
dois breves períodos: 1950-1964 e 1967-1980), mas a falta de uma burguesia
nacionalista não era problema, porque o chamado império era na verdade apenas
um "hegemon" benevolente —suas empresas multinacionais estavam
contribuindo para o desenvolvimento do país e bastava que o Brasil se
associasse a ele que se desenvolveria.
Não foi isso que aconteceu: em 1990, a
submissão aconteceu e, em 1995, se aprofundou. O país entrou em quase estagnação.
Não se imagine, porém, que os intelectuais
nacionalistas e desenvolvimentistas tenham escapado do ataque de Cardoso e
Faletto, ainda que esse ataque não fosse perfeitamente claro.
Em um primeiro momento, a Cepal de Raúl
Prebisch e Furtado percebeu que estava sob ataque e não quis publicar o livro
por meio do Ilpes (Instituto Latino-americano e do Caribe de Planejamento
Econômico e Social). Mais tarde, porém, ela se adaptou à crítica, se acomodou
ao império e perdeu qualquer relevância no plano das ideias.
A Cepal somente existiu como uma ideia —a do
desenvolvimentismo estruturalista clássico voltado para a industrialização—
entre 1949 e 1963, sob o comando de Raúl Prebisch. Em 1964, os
desenvolvimentistas foram derrotados e obrigados a ficar em silêncio. No começo
dos anos 1970, a Cepal abandonou o desenvolvimentismo.
Nos anos 1970, essa mesma esquerda,
desprevenida, se deixou envolver pelas ideias propostas por Cardoso e Falleto.
No plano econômico, essas ideias foram aceitas provavelmente porque a ideia de
associação ao império não estava clara no livro e nos trabalhos que seguiram —e
porque a esquerda estava ressentida com o golpe de 1964.
Por outro lado, a versão realmente marxista
da teoria da dependência, a teoria de André Gunder Frank, Ruy Mauro Marini e
Theotônio dos Santos, também era equivocada porque contava com a revolução
socialista na América Latina a curto prazo.
Essa versão sofreu um ataque violento e
injusto em artigo assinado por José Serra e o próprio Cardoso. Creio
que a iniciativa tenha sido mais de Serra que de Fernando Henrique, porque este
é um homem da melhor qualidade e cuja personalidade é incompatível com uma
atitude como essa.
Em 1969, sob a liderança de Cardoso e com
apoio da Fundação Ford, o Cebrap foi criado. Logo, ele se tornou o grande
centro de estudos em defesa da democracia e de crítica à desigualdade.
Foi nessa época em que fui convidado a ser
membro do conselho da nova entidade de pesquisa e me juntei a eles. Estava
isolado na Fundação Getulio Vargas e precisava de diálogo. Percebia que minhas
ideias desenvolvimentistas não eram ali bem vistas, mas fui muito bem recebido
e me associei à luta do Cebrap, onde, além dos intelectuais já citados, estavam
figuras notáveis como Chico de Oliveira e Paul
Singer. Lutávamos todos contra o regime militar.
Nessa época, porém, muitas das coisas que
estou narrando aqui não estavam claras para mim. Entre 1995 e 1999, participei
do governo FHC e, sob influência do que me envolvia, minhas convicções
desenvolvimentistas e meu interesse pelo marxismo diminuíram por algum tempo.
Fiquei, porém, decepcionado com o caráter
neoliberal que assumiu a direção da economia e, em 2003, revi minha posição em
relação a meu amigo Fernando Henrique. Voltei a ler seu livro com Faletto e
escrevi o ensaio "Do Iseb e da Cepal à teoria da dependência", publicado
em 2005, cuja primeira cópia entreguei a ele. Não era um rompimento pessoal,
mas intelectual. Havia compreendido o sentido de sua obra e de seu pensamento.
Estimulado pelo excelente livro de Querido,
decidi, nesta resenha, voltar agora ao tema da história intelectual. Uma
resenha mais crítica do que fora o artigo de 2005, uma crítica ao marxismo
neoliberal. Afinal, me pergunto: qual foi a contribuição ao Brasil desse grupo
de sociólogos, cientistas políticos e filósofos? Como compará-la com a
contribuição dos desenvolvimentistas social-democratas?
Os desenvolvimentistas se associaram a
Vargas, ainda que ele tenha sido um ditador entre 1937 e 1945, porque ele foi o
grande estadista que promoveu a industrialização e o grande desenvolvimento
econômico do Brasil. Os principais desenvolvimentistas tiveram uma influência
significativa na realização da revolução capitalista brasileira, que aconteceu
entre 1930 e 1980. Alguns deles eram socialistas, mas sabiam que a revolução
socialista não era uma possibilidade realista.
Enquanto isso, nossos marxistas neoliberais
flertaram com a revolução sem muito empenho e, mais tarde, se associaram ao
império e se tornaram neoliberais.
Na conclusão de "Lugar Periférico,
Ideias Modernas", Querido afirma que, enquanto os intelectuais do ciclo
nacional-desenvolvimentista popular das décadas de 1950 e 1960 estavam
interessados em um projeto de modernização nacional (anti-imperialista,
acrescentaria), "os acadêmicos paulistas expressavam a redefinição entre
intelectuais e política ocorrida na esteira das transformações pelas quais
passaram tanto a sociedade quanto a universidade brasileira, a partir dos anos
1970".
Ou seja, eles lograram se adaptar à realidade
social e política que os circundava em vez de tentar mudá-la. Algumas vezes, vi
Fernando Henrique, enquanto presidente da República, agir procurando se adaptar
em vez de procurar moldar o que estava acontecendo. Ele e seus companheiros
eram mais sociólogos que agentes republicanos.
*Professor emérito da Fundação Getulio
Vargas, ex-ministro da Fazenda (1987, governo Sarney), da Administração e da
Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (1995-1998 e 1999, governo FHC)
O livro de Querido é uma notável contribuição
à história intelectual do Brasil.
Lugar Periférico, Ideias Modernas: aos
Intelectuais Paulistas as Batatas
Preço R$ 64 (288 págs.); R$ 54,90
(ebook)
Autoria Fabio Mascaro Querido
Editora Boitempo
Link: https://www.boitempoeditorial.com.br/produto/lugar-periferico-ideias-modernas-153063
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