O Globo
Quis o destino que os deuses das artes
criassem a coincidência de colocar ‘Ainda estou aqui’ e ‘Não me entrego, não’
em temporadas simultâneas
Quis o destino que os deuses das artes
criassem a coincidência de colocar “Ainda estou
aqui”, filme de Walter
Salles, e “Não me entrego, não”, espécie de autobiografia artística de
Othon Bastos, em temporadas simultâneas. No teatro e no cinema, o público é
levado a um mergulho nos infortúnios provocados pela ditadura militar, com seus
assassinatos e sua ignorante censura à cultura.
“Ainda estou aqui” bate recordes de público e prêmios com a história do desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva. Em relato direto, exibe a entrada do arbítrio no interior de uma família de classe média. Paiva é levado por algozes do regime sem nenhuma ordem judicial, apenas pela força da violência, para um interrogatório de que não sairá vivo. Pior: seu corpo jamais será encontrado. Caso semelhante ocorreria se os celerados bolsonaristas tivessem levado a cabo um golpe de Estado em 2022 e 2023. Pelas ameaças que recebi, por certo não estaria mais aqui escrevendo tais linhas. Nem Lula, Alckmin ou Xandão, entre outros alvos dos ex-militares de pijama.
O grande Othon Bastos conta sua trajetória,
em texto escrito por Flávio Marinho, com personagens definitivos e marcantes no
cinema e no teatro. É um abalo sísmico. “Não me entrego, não” esteve cerca de
sete meses no Rio e já há 30 dias lota o Teatro Raul Cortez em São Paulo. De boca
a boca, de entusiasmo a entusiasmo, a peça transformou um monólogo, com 90
minutos de duração, levado à cena por um ator de 91 anos, numa contundente
fusão entre a emoção de uma vida rica, totalmente dedicada à arte, e o público
agradecido por uma interpretação em que se mesclam humor e poesia.
Assim como a música ao vivo, o teatro oferece
ao público a cumplicidade de partilhar o fôlego suspenso do ator; às vezes, sua
indecisão; noutros instantes, sua contida euforia ao alcançar a dosada emoção
da frase; ou de colocar a plateia em posição solidária ao presenciar uma gota
de suor na face do artista que escapa como sinal de vitória. Diria: são
orgasmos compartilhados entre espectador e artista. Não por acaso, “Não me
entrego, não” repete o alcance de audiência de “Ainda estou aqui”.
A autobiografia de Othon Bastos reconta
momentos de sua trajetória já gravados na História. Começa com seu personagem
Corisco na obra basilar de Gláuber Rocha, “Deus e o diabo na terra do sol”. Sob
a mira da espingarda de Antônio das Mortes, interpretado por Maurício do Valle,
escuta dele:
— Se entrega, Corisco.
Para ele responder, convicto:
— Não me entrego, não.
A cena, seguida de sua morte coreografada, é
dos instantes definitivos do cinema brasileiro. É como Chaplin lutando boxe ou
a despedida de Bogart e Bergman no aeroporto enevoado em “Casablanca”, criações
que nos deixam otimistas diante da possibilidade humana.
Depois, o palco. Durante a década de 1970, no
período mais sanguinário da ditadura, a burra censura dos militares mirava a
todos. Até o pobre Shakespeare esteve convocado a depor. Para Othon e seu grupo
(Martha Overbeck, sua mulher; o diretor Fernando Peixoto; mais os textos de
Gianfrancesco Guarnieri e Consuelo de Castro, entre outros autores e atores),
foi o tempo de encarar o arbítrio com montagens como “Ponto de partida”, “Um
grito parado no ar” ou “Murro em ponta de faca”. Os nomes das peças exibem o tom
do confronto, das mãos em punhos dispostos. Havia medo, e houve muita coragem.
As peças voltavam retalhadas pela censura. Com o agravante de que só eram
liberadas após encenação para os sequazes do regime. Várias montagens tiveram
de ser canceladas ao ser totalmente proibidas, como “Rasga coração”, de
Oduvaldo Vianna Filho, ou sofrer atentados, como “Roda viva”, de Chico
Buarque, com a atriz Marília
Pêra surrada pelo grupo de extrema direita Comando de Caça aos
Comunistas. Nem diante de tamanha violência, do Estado e de meliantes civis, o
lindo teatro se amedrontou.
Eu era adolescente na década de 1970 e
assisti a todas as peças do grupo de Othon Bastos. Além de muitas outras da
época. Como as encenações de Osmar Rodrigues Cruz, responsáveis por tornar as
comédias do genial Martins Pena sucesso popular. Ocorriam campanhas de
incentivo ao teatro, com preços extremamente baratos (algo como R$ 5 de hoje),
bancadas pelas secretarias de Cultura dos governos nomeados pelos generais da
ditadura. São as notórias contradições da vida brasileira.
E como piorou a política. A esquerda petista
patrocina a cultura das cotas, enquanto a ignorante extrema direita
bolsonarista, além de buscar o golpe, mente que artista é milionário.
Viva Othon!
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