domingo, 6 de julho de 2008

O DRAGÃO DA MALDADE CONTRA O SANTO GUERREIRO
Luiz Carlos Azedo

Lula é um mito para a maioria da população, mas seu carisma está sendo arranhado entre os jovens, na classe média e nas capitais

O inusitado e às vezes caótico cinema de Glauber Rocha era arrastado, com uma câmera nervosa e música frenética, no qual a inércia da realidade brasileira era apresentada como uma alegoria quase universal — daí seu sucesso no exterior. Foi assim com Terra em Transe, que retrata a crise do governo Jango e o golpe militar de 1964, e Deus e o Diabo na Terra do Sol, que denunciava o coronelismo e o gosto popular por um salvador da pátria, o nosso velho “sebastianismo”. O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro fecha a trilogia, com um embate de vida ou morte. De um lado Antônio das Mortes, caçador de cangaceiros, que havia matado Corisco. De outro, Coraína, um jagunço que se apresenta como a reencarnação de Lampião. O duelo é um confronto entre dois mitos, num enredo no qual os demais personagens são gente desorientada: um professor desiludido, um coronel com manias de grandeza, um delegado com ambições políticas e uma mulher tragicamente solitária. Os contraditórios conceitos de moral e justiça se embaralham no roteiro, uma situação muito recorrente na política, onde os governantes gostam de ignorar que nem sempre os fins justificam os meios. É mais ou menos o que estamos assistindo agora, na batalha do governo Lula contra a inflação.

A Maldade

Foi com uma ponta de ironia que o ex-presidente José Sarney usou a clássica comparação da inflação com um dragão, o único signo imaginário do horóscopo chinês, um mito também presente na cultura ocidental. O dragão-de-komodo, um lagarto da ilha na Indonésia que lhe empresta o nome, e os pterossauros da pré-história são os animais mais parecidos com aqueles que povoam o imaginário popular. “Houve um tempo em que me enchi de esperança e, com a espada do Cruzado, investi contra sua couraça e, quando eu cantava vitória, ele voltou e quase me engole”, lembra Sarney, que perdeu o controle da inflação logo depois das eleições de 1986, quando o PMDB obteve uma espetacular vitória. À época, esse resultado foi considerado um “estelionato eleitoral”.

O Plano Cruzado revelava um certo sebastianismo de Sarney : Dom Sebastião I, rei de Portugal, desapareceu nas Cruzadas durante a batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos, em 4 de agosto de 1578, mas virou um santo redendor. Sarney também lembrou que o ex-presidente Collor de Mello (que se elegeu espancando seu governo) tentou acabar com inflação com um só tiro. Fracassou de maneira ainda mais espetacular, pois acabou renunciando ao cargo para evitar o impeachment. Fernando Henrique, que lançou o Plano Real durante o governo Itamar, passou seus dois mandatos com um olho na inflação e outro nas crises cambiais. Agora, o dragão está de volta, atormentando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

O Santo

O fenômeno é mundial. A inflação marca uma mudança na situação internacional, que até recentemente foi muito favorável à economia brasileira. Lula navegou em mar de brigadeiro, mas agora terá que provar sua capacidade de liderar o país num ambiente econômico proceloso. Os bancos centrais dos países desenvolvidos elevarão os juros para conter a inflação, mas terão que usar a dose correta para evitar uma recessão mundial. A maioria dos países será obrigada a seguir essa receita, adicionando um arrocho nos gastos do governo. O Brasil foge à regra.

Com a inflação domada, o governo Lula aproveitou a bonança mundial para contratar funcionários, dar reajustes e crédito aos servidores e aposentados, elevar o salário mínimo e os benefícios do Bolsa Família.Também decidiu ampliar os investimentos públicos em infra-estrutura e nas regiões metropolitanas, mesmo com o sinal fechado da economia global. Agora, já não tem como reduzir os gastos públicos sem grandes desgastes políticos e eleitorais, seja nas eleições municipais, seja na sucessão em 2010, para a qual iniciou a contagem regressiva ao lançar a candidatura da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff.

A inércia da inflação é uma corrida contra o relógio. Lula sabe do risco de acompanhar a progressiva erosão do poder de compra da população, principalmente dos mais pobres, até a economia se desacelerar. E tenta evitar que isso ocorra com paliativos, pois sabe que o dragão da inflação pode matar o santo guerreiro que encarnou ao assumir o poder. Lula é um mito para a maioria da população, mas a última pesquisa CNI/Ibope mostra que seu carisma está sendo arranhado entre os jovens, na classe média e nas capitais. Nas regiões Norte e no Centro-Oeste, a inflação já faz estragos. Lula optou por empurrar o problema com a barriga e deixar para o sucessor resolvê-lo. Avalia que tem musculatura para resistir até lá. Será? Pode ser.

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