domingo, 8 de março de 2009

Sem limites

Especial
Expedito Filho
DEU NA VEJA


Documentos provam que o delegado Protógenes Queirozbisbilhotou ilegalmente a vida de autoridades. Pior, ele dizia agir em nome do presidente Lula, cujo filho Fábio Luísteria sido, nas palavras do policial, "cooptado" peloex-banqueiro Daniel Dantas

A Operação Satiagraha, da Polícia Federal, conduzida pelo delegado Protógenes Queiroz, será lembrada como um sucesso por ter conseguido o feito inédito na história do combate à corrupção no Brasil de levar à condenação na Justiça Criminal um ex-banqueiro – no caso, Daniel Dantas, dono do grupo Opportunity. Mas a operação também ficará marcada para sempre por ter servido de fachada para o funcionamento de uma máquina ilegal de espionagem que, em ousadia e abrangência, também não tem paralelo na história brasileira. Protógenes, que durante um ano e meio comandou a Operação Satiagraha, está sendo investigado por tais abusos pela própria Polícia Federal. O inquérito em andamento tem como uma de suas principais fontes de evidências o conteúdo do computador apreendido por policiais na casa de Protógenes. Na semana passada, VEJA teve acesso à integra desse material. O conteúdo é estarrecedor e prova que o delegado centralizava o trabalho de uma imensa rede de espionagem que bisbilhotou secretamente desde a vida amorosa da ministra Dilma Rousseff até a antessala do presidente Lula, no Palácio do Planalto – passando pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e pelo governador José Serra, além de senadores e advogados.

Nos documentos encontrados na residência do delegado há relatórios que levantam suspeitas graves sobre as atividades de ministros do governo, fotos comprometedoras que foram usadas para intimidar autoridades e gravações ilegais de conversas de jornalistas – tudo produzido e guardado à margem da lei. O material clandestino – 63 fotografias, 932 arquivos de áudio, 26 arquivos de vídeo e 439 documentos em texto – foi apreendido em novembro do ano passado pela Polícia Federal e estava armazenado em um computador portátil e em um pen drive guardado no apartamento do delegado no Rio de Janeiro. Os policiais buscavam provas de ações ilegais da equipe de Protógenes, entre as quais o áudio da interceptação clandestina de uma conversa entre o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, e o senador Demóstenes Torres. A existência do grampo foi revelada a VEJA em agosto do ano passado por um agente da Abin que participou da Operação Satiagraha como encarregado da transcrição de centenas de outras conversas captadas ilegalmente. O resultado final da investigação deve ser anunciado até maio, mas, pelo que já se encontrou nos arquivos pessoais de Protógenes, não resta mais sombra de dúvida sobre a extensão de suas ações ilícitas, cuja ousadia sem limite chegou à antessala do presidente Lula e a seu filho Fábio Luís.

A investigação da corregedoria da Polícia Federal reconstituiu parte dos bastidores da Satiagraha. O delegado Protógenes Queiroz foi encarregado pelo ex-diretor da arapongagem federal, a Abin, delegado Paulo Lacerda, de montar uma equipe para se dedicar exclusivamente às investigações sobre o banqueiro Daniel Dantas. Em maio de 2006, VEJA publicou uma reportagem revelando que o banqueiro havia montado, com a ajuda de espiões internacionais, um dossiê para constranger autoridades do governo, entre elas o presidente Lula e o próprio Lacerda – que cedeu "informalmente" espiões da agência para ajudar o delegado. Protógenes recrutava os espiões com o argumento patriótico de que eles estavam sendo convocados para uma "missão presidencial". A suposta ordem do presidente e o nome de Fábio Luís da Silva surgiram nos depoimentos dos arapongas. Um deles, Lúcio Fábio Godoy, contou aos policiais que ouvira de Protógenes que Lula tinha interesse na investigação porque "seu próprio filho teria sido cooptado por essa organização criminosa". Não se sabe com que autoridade o delegado Protógenes usou o nome do presidente Lula. A suposta "cooptação" do filho do presidente pela organização criminosa se deve a um fato bastante conhecido. Em 2004, a Brasil Telecom, empresa de telefonia então controlada por Dantas, contratou a Gamecorp, produtora de games do filho do presidente. Pelo contrato, Dantas dava 100.000 reais por mês a Fábio Luís.

Os depoimentos contidos nos nove volumes do inquérito comprovam de modo irretorquível que os arapongas da Abin participaram massivamente da Satiagraha e, pior, manusearam as conversas telefônicas interceptadas pela PF – o que é expressamente ilegal. O espião Jerônimo Jorge da Silva Araújo, por exemplo, contou ao delegado Amaro Vieira, responsável pelo inquérito que apura o vazamento da Satiagraha, que sua função na equipe consistia em degravar áudios da investigação. Ele trabalhava clandestinamente no quarto de um hotel de São Paulo e tinha acesso ilegal ao sistema Guardião, que organiza as gravações feitas pela PF e registra todos os usuários. Há um detalhe especialmente perturbador no depoimento do araponga. Diz Jerônimo: "Na base do hotel, eu acessava outro tipo de sistema, do qual não me recordo o nome, mas posso afirmar que era um sistema diferente do Guardião e que os áudios que eram acessados pareciam estar gravados no próprio computador que era utilizado para degravação". A afirmação do espião é grave: o único sistema utilizado oficialmente pela PF para acessar grampos é o Guardião. Por que recorrer a "outro sistema"? E por que recorrer a alguém da Abin para fazer isso? São perguntas que esperam respostas claras e inequívocas das autoridades.

Os arquivos de Protógenes mostram um especial interesse pelas atividades do ex-ministro José Dirceu. O delegado e seus arapongas apelidaram o petista de "Zeca Diabo" – nome de um matador de aluguel da primeira novela em cores do Brasil, O Bem Amado. Um dos documentos, arquivado sob o nome "Informações Zeca", relata que o ex-ministro-chefe da Casa Civil "embarcou ontem, 17/04, para o Panamá. De lá, segue um roteiro internacional de negócios até 10 de maio". Em outros trechos, os espiões escrevem sobre possíveis negócios do ex-ministro e supostos encontros de Dirceu com deputados envolvidos no escândalo do mensalão. O petista já havia reclamado ao presidente Lula que estava sendo monitorado ilegalmente. Em vão. No ano passado, o escritório dele foi arrombado. Os invasores só levaram um computador e documentos. Até a petista Dilma Rousseff, chefe da Casa Civil e pré-candidata à Presidência da República, foi alvo dos espiões. Em um documento, eles descrevem em termos grosseiros supostas relações amorosas da ministra, cujo parceiro eles identificam. Como e por que essas barbaridades interessaram ao delegado Protógenes a ponto de ele as guardar em seu computador é algo que o inquérito da PF sobre ele deverá esclarecer. A existência em si desses registros na casa de um servidor é um escândalo administrativo de grandes proporções. Quando se acrescem os métodos clandestinos utilizados para produzi-los, a máquina de espionagem do Dr. Protógenes começa a tomar ares mais tenebrosos.

Um desses documentos está arquivado sob a rubrica "Confidencial e Privilegiado", com data de 11 de janeiro de 2005. Ali, apresenta-se o resultado de uma detalhada investigação sobre a relação do atual ministro Roberto Mangabeira Unger com o Opportunity. Mangabeira nunca foi investigado formalmente no decorrer da Operação Satiagraha, e sua proximidade com Daniel Dantas é notória há anos. Quando Lula o convidou para assumir a recém-criada Secretaria de Assuntos Estratégicos, o professor foi obrigado a comprovar que não mantinha mais relações contratuais com a turma de Daniel Dantas. Mesmo assim, a nomeação de Mangabeira causou desconforto em setores do PT que sempre combateram os métodos criminosos do ex-banqueiro – situação perfeita para acionar a mente paranoica do delegado Protógenes. Como o relatório final da Operação Satiagraha demonstrou, o raciocínio bicolor do delegado não comporta meios-termos nem nuances. Se Mangabeira já esteve no bolso de Daniel Dantas, ele fatalmente entrou no governo para servir ao banqueiro. Simples assim. Embora não haja nenhuma evidência de que Mangabeira tenha feito qualquer tipo de gestão favorável ao banqueiro, Protógenes empenhou-se em investigar clandestinamente o professor.

Num documento intitulado "Caso Mangabeira", há cópia de contratos assinados entre o professor e o Opportunity, assim como planilhas de pagamentos feitos pelo banqueiro a Mangabeira, entre os anos de 2002 e 2005, enquanto o professor trabalhava para Dantas. Mas Protógenes foi além. Citando "evidências colhidas pela BT (Brasil Telecom)", ele – ou quem quer que tenha produzido o relatório – afirma que Mangabeira viajou a Nova York no dia 29 de janeiro de 2004 para se encontrar com os arapongas da Kroll, agência de investigação contratada pelo banqueiro para espionar seus adversários. Em 2004, a Polícia Federal desmontou o esquema de espionagem criado pela Kroll contra os inimigos de Dantas – entre eles, o ex-ministro Luiz Gushiken. Mangabeira, frise-se, nunca foi acusado de cometer nenhuma ilegalidade. Não se sabe como o delegado obteve as informações e os documentos sobre o ministro, mas, uma vez de posse deles, Mangabeira foi promovido a "político associado" do grupo Opportunity num organograma secreto, preparado pelos arapongas. O ministro não é o único "político associado". Ele está ao lado do nome dos senadores Heráclito Fortes, do DEM do Piauí, e ACM Júnior, do DEM da Bahia. Heráclito é amigo do empresário Carlos Rodenburg, sócio de Dantas, e atua como defensor do grupo Opportunity no Congresso. A inclusão do nome de ACM Júnior, no entanto, é misteriosa. Não se sabe qual seria a relação dele com Dantas.

O ápice da metodologia de trabalho de Protógenes está registrado num relatório da PF classificado como "confidencial", com data de 12 de junho do ano passado. Nele, o delegado diz que tem sido "alvo de constantes vigilâncias". A única "vigilância" que Protógenes cita no documento teria acontecido no restaurante Original Shundi, em Brasília. Na noite anterior à elaboração do documento, o delegado diz que jantava no restaurante quando o advogado Nélio Machado, que trabalha para Dantas, se sentou numa mesa próxima, acompanhado de um grupo de "pessoas não identificadas". Narra o relatório: "(Os advogados) passaram a se comportar em (sic) atitudes suspeitas, o que por dever de ofício obrigou o DPF Queiroz a sacar o celular e fazer o registro fotográfico das pessoas que ali se encontravam" – o que, de fato, Protógenes fez. As fotos estavam no computador do delegado e mostram o advogado e seus amigos... jantando. Muito suspeito. Durante meses, o delegado Protógenes espalhou que o advogado Nélio Machado estava acompanhado de assessores do ministro Gilmar Mendes, em uma clara insinuação de que haveria uma relação promíscua entre o presidente do STF e a defesa do banqueiro. Ele dizia que tinha fotos que provavam o encontro. Nunca as mostrou. Agora a razão disso ficou clara. Quando a Polícia Federal identificou as pessoas que são vistas nas imagens, o blefe de Protógenes apareceu em toda a sua pomposa falsidade. Foi mais uma tentativa criminosa do delegado de atingir o presidente do STF, portanto, chefe de um dos poderes independentes da República.

O material apreendido pela PF está dividido em duas partes. Uma delas é formada por relatórios policiais, gravações telefônicas e ambientais, vídeos, planilhas e transcrições de conversas interceptadas. São peças do inquérito, comandado por Protógenes, que investigou Daniel Dantas, obtidas pelo delegado com base em diligências autorizadas pela Justiça. É estranho que Protógenes tenha aberto um baú em casa para guardar documentos sigilosos que deveriam integrar apenas o inquérito oficial. A segunda parte do material, porém, é bem mais que isso. Ela reúne gravações telefônicas de conversas entre membros da comunidade de inteligência e dirigentes da Abin, fotografias, imagens de pessoas que não eram investigadas na operação e informes de arapongas sobre a vida íntima e profissional de autoridades e ex-autoridades. A polícia ainda não conseguiu abrir alguns documentos apreendidos com a equipe do delegado e que estão protegidos por senhas de acesso, com codinomes como "Tucano", "FHC" e "Serra". Os arquivos de Protógenes Queiroz continham até um manual detalhado sobre como operar um equipamento clandestino de interceptação de telefonemas e mensagens de celular. Interceptações autorizadas pela Justiça são feitas pelas companhias telefônicas e seu conteúdo é armazenado em computadores da Polícia Federal. Por que será que Protógenes Queiroz guardava um manual assim em casa?

Uma pista pode ser encontrada no próprio baú digital do delegado. Analisados em seu conjunto, os documentos apreendidos mostram que gravações ilegais eram uma de suas principais ferramentas de investigação. Uma das investidas mais perversas foi usada pela turma do delegado contra a jornalista Andréa Michael, da Folha de S.Paulo. Andrea é autora de uma reportagem, publicada em abril passado, que noticiou a investigação da PF sobre Daniel Dantas. A reportagem levou os advogados do banqueiro a fazer uma varredura na Justiça Federal de São Paulo em busca de detalhes da investigação e despertou a ira da turma do delegado Protógenes. No pen drive do delegado foi encontrado um vídeo, de 7 minutos e 39 segundos, no qual a jornalista aparece conversando com um emissário dele. Não há nada que a desabone, o que não impediu Protógenes e sua equipe de vinculá-la no inquérito à "organização criminosa" e pedir sua prisão preventiva. O vídeo é uma prova de como a equipe do delegado utilizou expedientes ilegais e clandestinos para investigar pessoas que não eram alvo de sua operação. É a constatação também de que a ausência de provas não foi obstáculo para incluir essas mesmas pessoas no inquérito.

Há uma vertente importante que deve ser apurada sobre a famosa Satiagraha – o consórcio formado entre a polícia, o Ministério Público e a Justiça. As ilegalidades da operação podem acabar livrando da cadeia um vilão do calibre de Daniel Dantas. Por causa disso, o juiz do caso, Fausto de Sanctis, está sob investigação da corregedoria da Justiça Federal. Já o Ministério Público, desde que foi regulamentado, em 1988, não apresentava uma atuação tão incomum. Em São Paulo, procuradores, em vez de apurar os abusos denunciados, tentaram usar todos os instrumentos legais para manter intacto o conteúdo dos computadores do delegado. Os procuradores chegaram a bater de frente com o juiz Ali Mazloum, da 7ª Vara Federal, que já informou que pretende solicitar vários procedimentos sobre as ações clandestinas do delegado Protógenes – e conta para isso com o apoio do Conselho Nacional de Justiça. O deputado Marcelo Itagiba, presidente da CPI dos Grampos, disse que ainda não examinou os documentos, que chegaram à comissão apenas na semana passada. "Mas tudo parece muito grave e, se confirmado, vou pedir a prorrogação dos trabalhos", garantiu o parlamentar ao ser informado do conteúdo. O delegado Protógenes não foi encontrado. Um dos arquivos de seu computador mostra que ele estava se dedicando a escrever uma autobiografia. Título: "Protógenes, a Lenda".

Com reportagem de Alexandre Oltramari e Diego Escosteguy

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