domingo, 8 de março de 2009

Retorno às trevas

Alberto Dines
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

Um dia antes, entre compungida e devota, a quase-candidata Dilma Rousseff leu a Bíblia e participou do show-missa bizantino do Padre Marcelo Rossi. Nesta sexta-feira, no Espírito Santo, o presidente da República deixou o script de lado, esqueceu as conveniências políticas e a estratégia de agradar a todos e fez um veemente protesto contra a excomunhão dos médicos que fizeram o aborto na menina estuprada pelo padrasto. “Neste aspecto, a medicina está mais correta do que a Igreja”, proclamou o presidente.

Neste aspecto e em muitos outros. E não apenas a Igreja Católica: as religiões, todas as religiões, estão redondamente enganadas ao imaginar que a humanidade ainda não passou pelo Renascimento e o Iluminismo e que o processo civilizatório deteve-se no tempo.

Mais piedosa e, sobretudo, mais humana do que o arcebispo de Olinda e o Recife que pronunciou o anátema, a diretora do centro médico onde se processou o aborto, declarou: “Graças a Deus estou no rol dos excomungados.” “Graças a Jesus Cristo sou ateu”, escreveu o filósofo e político italiano Gianni Vattimo, no diário espanhol El País (domingo, 01/03, p. 25).

Além de cometer o pecado da arrogância e da soberba, o arcebispo d. José Cardoso Sobrinho criou um caso diplomático entre a Santa Sé e o Estado brasileiro. A afoiteza da sua manifestação contraria frontalmente a recente Concordata assinada em Roma pelo presidente Lula e o papa Bento XVI. Trata-se de uma clara ingerência nos assunto internos do País já que na quarta-feira, quando excomungou os médicos e a mãe da menina violentada (que autorizou a intervenção médica), o arcebispo declarou que quando uma lei promulgada pelos legisladores contraria a lei de Deus, essa lei humana não tem qualquer valor. O sacerdote insubordina-se contra as leis que deveria respeitar na condição de representante de um Estado estrangeiro e promove abertamente a subversão da ordem no país que lhe oferece proteção e liberdade. Esta é uma oportunidade preciosa para retomar a discussão sobre o caráter laico e secular do Estado moderno. Os conceitos de democracia e cidadania não têm condição de conviver com dogmas cerceadores da liberdade de escolher.

Como aconteceu recentemente na Itália (quando o Vaticano desafiou as autoridades que aceitaram a interrupção da alimentação venosa da jovem Eluana Englaro há 17 anos em estado vegetativo), é imperioso estabelecer limites nítidos entre as crenças individuais e as normas que regem a sociedade. Crer ou descrer são prerrogativas íntimas, não podem ser desrespeitadas nem impostas.

Quando foi divulgada a suposta agressão de Paula Oliveira por skinheads suíços, o país reagiu com veemência às doutrinas xenófobas e racistas que tomam conta da Europa.

Agora, por coerência, não podemos nos curvar ao totalitarismo pseudo-espiritual que anula o direito de pensar e individuar-se.
Os fantasmas e ameaças que hoje rondam a aldeia global só poderão ser exorcizados com um instrumental ético e regulamentos morais imunes às hipocrisias confessionais.

Cinismo é o nome do Inimigo Público Nº 1, ele é o pai e a mãe da corrupção. Falsidade e dissimulação só prosperam em sociedades ambíguas que confundem valores, impedidas de buscar a verdade.

Ao proclamar que o aborto é mais grave do que o estupro o arcebispo curva-se à violência. Seu fundamentalismo é o grande fomentador de um relativismo que acabará por liquidar qualquer tipo de solidariedade, respeito humano e amor ao próximo.

Raras vezes conseguiu o presidente Lula expressar com tamanha clareza tamanho consenso. Não lhe fará mal algum – ao contrário só o engrandecerá – se levar adiante uma profissão de fé humanista e humanitária. Sua inata religiosidade não será afetada se mantiver a disposição de evitar o seqüestro do Estado pelos egressos do feudalismo e os cruzados das trevas.

» Alberto Dines é jornalista

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