DEU EM O ESTADO DE MINAS
Mas afinal, de que se trata o lulismo ? Êle existe mesmo, é algo que veio para ficar na sociedade brasileira marcando o seu desenvolvimento político por muitas décadas (tais como o peronismo na Argentina, o getulismo no Brasil nas décadas posteriores à Revolução de 30, o franquismo e o salazarismo na Espanha e Portugal dos anos 30 a 70) ? Ou se trata de uma nuvem de fantasia, predestinada a se desvanecer ao menor sinal de crise econômica mais duradoura ou de esgotamento do período excepcional de expansão da economia mundial que levou vento às velas das caravelas do governo Lula em seus dois mandatos ? Evidentemente, só o tempo será senhor da verdade.
André Singer – o cientista político da USP que foi o porta-voz do governo Lula em seu primeiro mandato – e Rudá Ricci – o sociólogo paulista radicado em Minas que tem se destacado na avaliação de políticas públicas – em dois trabalhos pioneiros publicados recentemente levantaram a hipótese do “lulismo” como um fenômeno que representaria uma novidade diferenciadora de uma nova estruturação social brasileira. Algo que veio para ficar, a simbologia no plano eleitoral de uma nova correlação de forças dentro e na sociedade brasileira. Abriu-se então, a partir das hipóteses levantadas por Singer e por Ricci, uma nova vertente de estudos sobre a realidade nacional.
É inegável que a economia brasileira apresentou nos últimos anos um desempenho bastante superior aos anos de crise que caracterizaram as chamadas “décadas perdidas” em termos de desenvolvimento nacional. Ou seja, o crescimento econômico foi bastante medíocre nos anos oitenta e noventa. Em conseqüência, os avanços sociais neste mesmo período foram acanhados, apesar do campo favorável proporcionado pela abertura política relacionada com a substituição do regime militar pelo poder civil, mais suscetível de atender as reivindicações sociais. Mas, quando o cobertor é pouco... Em anos de crise e relativa estagnação econômica, os ganhos sociais ficam limitados pelo cobertor curto. O crescimento recente da economia brasileira no governo Lula permitiu uma reversão radical da situação anterior.
Mérito de Lula ? Ou coincidência fortuita, em função da expansão excepcional da economia internacional que teria proporcionado ao “sortudo” Lula os ventos necessários para aportar as suas caravelas no doce paraíso da expansão econômica acelerada. Esta discussão pode se mostrar interminável e acabar, o mais das vezes, em bolinhas de papel e objetos contundentes despejados na cabeça do adversário, como na recente campanha eleitoral...
O fato é que a expansão da economia internacional nos anos recentes foi a base incontestável do clima de bonança econômica que caracterizou parte do governo Lula, especialmente a partir de 2004. Foram os anos do espetáculo do crescimento , como o chamou o marqueteiro mor do País – Sua Excelência, o Presidente da República. Até mesmo a grave crise econômica internacional de 2008/2009 afetou de maneira amena a economia nacional, não pelas habilidades dos timoneiros Lula e Mantega, mas pelo fato de que a China continuou a sua notável expansão econômica e se mostrou consumidora voraz – e a preços crescentes – de tudo quanto foi commodities que as Argentinas e os Brazis da vida lhe ofereceram na mesa de iguarias.
Não há dúvida de que a sensação do “feel good” que está na base do fenômeno do lulismo e que explica em parte substancial a grande adesão popular à figura carismática do Presidente se deu, então, não em conseqüência de méritos excepcionais das políticas governamentais do governo Lula, mas apesar delas. Ironia da vida... Quanto mais a figura mítica do Lula atacava a chamada “herança maldita” que lhe foi legada pelo seu antecessor, mais a suas próprias políticas se baseavam na extensão e aprofundamento do que havia herdado o seu governo : a política econômica, a abertura da economia, as linhas principais das políticas sociais, as políticas de modesta redistribuição de renda e favorecimento do surgimento de uma “nova classe média” ascendente do ventre das classes D e E na curiosa estruturação social brasileira.
Não que os governos sejam exatamente iguais, pois nunca o são e nunca o serão (e isto é válido também para as previsões relacionadas com o período II do lulismo, isto é, o futuro governo Dilma).
Mas o que queremos propor é girar o eixo da discussão para um novo pólo : em existindo o lulismo, é ele sustentável ? Está assentado sobre sólidas estruturas ? Ou tenderá a se desvanecer a medida em que a figura protagônica do seu ator principal deslize inevitavelmente para um segundo plano com a passagem do poder ? Estamos tratando de uma estátua de bronze que vai perdurar por décadas ? Ou de umas destas alegorias de carros de carnaval tão características das escolas de samba , que tendem a se desmanchar quando mergulhadas nas chuvas tropicais do verão carioca ?
Nem tanto ao céu, nem tanto ao mar...
A primeira observação a se fazer é a de que a sensação do “feel good”, esta sensação difusa de bem-estar generalizado que é a base da simpatia e adesão à figura do Lula, parece ser de uma fragilidade espantosa. Em primeiro lugar, porque é pouco crível que os anos de forte expansão econômica que caracterizou boa parte do governo Lula dificilmente se repetirão de forma constante e indeterminada. O chamado “lulismo” não apagou os ciclos da história econômica, assim como não poderá ter apagado da memória dos estudiosos a semelhança do modelo atual de “expansão para fora” baseado na exportação de produtos primários com o esgotamento histórico deste modelo vivido pelos países da América Latina a meados do século passado. Precisamos voltar a ler Celso Furtado, Raul Prebish, os grandes pensadores estruturalistas latinoamericanos.
Mas afinal, de que se trata o lulismo ? Êle existe mesmo, é algo que veio para ficar na sociedade brasileira marcando o seu desenvolvimento político por muitas décadas (tais como o peronismo na Argentina, o getulismo no Brasil nas décadas posteriores à Revolução de 30, o franquismo e o salazarismo na Espanha e Portugal dos anos 30 a 70) ? Ou se trata de uma nuvem de fantasia, predestinada a se desvanecer ao menor sinal de crise econômica mais duradoura ou de esgotamento do período excepcional de expansão da economia mundial que levou vento às velas das caravelas do governo Lula em seus dois mandatos ? Evidentemente, só o tempo será senhor da verdade.
André Singer – o cientista político da USP que foi o porta-voz do governo Lula em seu primeiro mandato – e Rudá Ricci – o sociólogo paulista radicado em Minas que tem se destacado na avaliação de políticas públicas – em dois trabalhos pioneiros publicados recentemente levantaram a hipótese do “lulismo” como um fenômeno que representaria uma novidade diferenciadora de uma nova estruturação social brasileira. Algo que veio para ficar, a simbologia no plano eleitoral de uma nova correlação de forças dentro e na sociedade brasileira. Abriu-se então, a partir das hipóteses levantadas por Singer e por Ricci, uma nova vertente de estudos sobre a realidade nacional.
É inegável que a economia brasileira apresentou nos últimos anos um desempenho bastante superior aos anos de crise que caracterizaram as chamadas “décadas perdidas” em termos de desenvolvimento nacional. Ou seja, o crescimento econômico foi bastante medíocre nos anos oitenta e noventa. Em conseqüência, os avanços sociais neste mesmo período foram acanhados, apesar do campo favorável proporcionado pela abertura política relacionada com a substituição do regime militar pelo poder civil, mais suscetível de atender as reivindicações sociais. Mas, quando o cobertor é pouco... Em anos de crise e relativa estagnação econômica, os ganhos sociais ficam limitados pelo cobertor curto. O crescimento recente da economia brasileira no governo Lula permitiu uma reversão radical da situação anterior.
Mérito de Lula ? Ou coincidência fortuita, em função da expansão excepcional da economia internacional que teria proporcionado ao “sortudo” Lula os ventos necessários para aportar as suas caravelas no doce paraíso da expansão econômica acelerada. Esta discussão pode se mostrar interminável e acabar, o mais das vezes, em bolinhas de papel e objetos contundentes despejados na cabeça do adversário, como na recente campanha eleitoral...
O fato é que a expansão da economia internacional nos anos recentes foi a base incontestável do clima de bonança econômica que caracterizou parte do governo Lula, especialmente a partir de 2004. Foram os anos do espetáculo do crescimento , como o chamou o marqueteiro mor do País – Sua Excelência, o Presidente da República. Até mesmo a grave crise econômica internacional de 2008/2009 afetou de maneira amena a economia nacional, não pelas habilidades dos timoneiros Lula e Mantega, mas pelo fato de que a China continuou a sua notável expansão econômica e se mostrou consumidora voraz – e a preços crescentes – de tudo quanto foi commodities que as Argentinas e os Brazis da vida lhe ofereceram na mesa de iguarias.
Não há dúvida de que a sensação do “feel good” que está na base do fenômeno do lulismo e que explica em parte substancial a grande adesão popular à figura carismática do Presidente se deu, então, não em conseqüência de méritos excepcionais das políticas governamentais do governo Lula, mas apesar delas. Ironia da vida... Quanto mais a figura mítica do Lula atacava a chamada “herança maldita” que lhe foi legada pelo seu antecessor, mais a suas próprias políticas se baseavam na extensão e aprofundamento do que havia herdado o seu governo : a política econômica, a abertura da economia, as linhas principais das políticas sociais, as políticas de modesta redistribuição de renda e favorecimento do surgimento de uma “nova classe média” ascendente do ventre das classes D e E na curiosa estruturação social brasileira.
Não que os governos sejam exatamente iguais, pois nunca o são e nunca o serão (e isto é válido também para as previsões relacionadas com o período II do lulismo, isto é, o futuro governo Dilma).
Mas o que queremos propor é girar o eixo da discussão para um novo pólo : em existindo o lulismo, é ele sustentável ? Está assentado sobre sólidas estruturas ? Ou tenderá a se desvanecer a medida em que a figura protagônica do seu ator principal deslize inevitavelmente para um segundo plano com a passagem do poder ? Estamos tratando de uma estátua de bronze que vai perdurar por décadas ? Ou de umas destas alegorias de carros de carnaval tão características das escolas de samba , que tendem a se desmanchar quando mergulhadas nas chuvas tropicais do verão carioca ?
Nem tanto ao céu, nem tanto ao mar...
A primeira observação a se fazer é a de que a sensação do “feel good”, esta sensação difusa de bem-estar generalizado que é a base da simpatia e adesão à figura do Lula, parece ser de uma fragilidade espantosa. Em primeiro lugar, porque é pouco crível que os anos de forte expansão econômica que caracterizou boa parte do governo Lula dificilmente se repetirão de forma constante e indeterminada. O chamado “lulismo” não apagou os ciclos da história econômica, assim como não poderá ter apagado da memória dos estudiosos a semelhança do modelo atual de “expansão para fora” baseado na exportação de produtos primários com o esgotamento histórico deste modelo vivido pelos países da América Latina a meados do século passado. Precisamos voltar a ler Celso Furtado, Raul Prebish, os grandes pensadores estruturalistas latinoamericanos.
O “lulismo” os substituiu pelos teóricos neodesenvovimentistas da estruturação das empresas campeãs nacionais, do dinheiro fácil e subsidiado do BNDES jorrando em bicas sobre empresários ineficientes e projetos mirabolantes. A visão estrutural de um Celso Furtado foi substituída pelo pensamentocurto-prazista das viúvas de Geisel, o general presidente do fracasso do II PND, cuja visão de capitalismo nacional-estatista parece ser o eixo do modelo lulista na economia... Os trens-bala de hoje dos neodesenvolvimentistas neogeiselianos serão as Ferrovias do Aço de ontem... Talvez nem isto, mais bem tendem a repetir a Ferrovia Norte-Sul dos empreiteiros de Sarney... Quando o castelo de cartas se desmoronar, o que ficará de “mico” na mão dos (i)responsáveis políticos por tal modelo ?
A base social do lulismo é também de uma consistência duvidosa. Ela aparenta, segundo a maior parte das análises, estar ancorada em dois pés : o bolsa-familia – poderoso instrumento de combate à miséria- e as políticas que tenderam a favorecer a ascensão da chamada “nova classe média”.
O bolsa-família – que foi uma adaptação ao Brasil de uma política defendida pelo Banco Mundial de se focar o combate à miséria em medidas pontuais – representa tudo aquilo a que o PT e Lula historicamente combateram. A genialidade política do Lula consistiu, neste caso, em simplesmente dar um giro de 180 graus no que defendia o PT e em perceber a formidável arma política que tinha em mãos. Tratou-se de uma genialidade do tipo de “ovo de Colombo”, que o Lula transformou em uma fábrica geradora de votos. Por que não o fez o social-democrata Fernando Henrique Cardoso ? Simplesmente porque talvez, na realidade, por sua formação aristocrática, tinha horror aos pobres. Foi capaz de iniciar o programa – que tinha tudo a ver não só com as políticas neoliberais do Banco Mundial mas também com o próprio ideário da social-democracia – mas foi incapaz de ampliá-lo a uma escala efetivamente abrangente e que provocasse impacto significativo (conforme apontei em uma tese de doutorado defendida em 2001 na Universidade de Paris).
Quanto a chamada “nova classe média” , há indícios de que este conceito tem sido utilizado de forma um pouco abusiva. Existe mesmo uma nova classe média ? Como chamar de “classe média” os estratos de renda compreendidos em faixas que apenas se diferenciam dos casos de pobreza relativa ? Ou, na melhor das hipóteses, de insuficiência de renda para um padrão de vida confortável ? A chamada “nova classe média” parece ser integrada pela “velha sofrida classe trabalhadora” que mal se mantém com o nariz fora da linha d’água...O nível de renda familiar aumentou, sim, mais devido ao aumento no número de familiares inseridos no mercado de trabalho do que devido a uma real ascensão econômica e social. Ascensão econômica houve sim de economistas que disputam àvidamente régios contratos de consultoria governamental para demonstrar que tudo vai candidamente bem, no melhor dos governos possíveis... Longe de mim estar criticando técnicos do Ipea, da FGV, do BNDES et caterva...Mas que o fenômeno existe, existe.
Fernando Pessoa disse certa vez : “ Porque eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura”. Corremos o risco de estar subestimando a importancia do fenômeno do lulismo ? Ou, ao contrário, estamos diante de uma superestimação do que seria efetivamente o lulismo ? Estamos tentando examinar os astros com um microscópio ? Ou simplesmente examinando uma formiga com a lente invertida de uma luneta ?
Words, words, words, disse Shakespeare...
*Doutor em Ciências Econômicas pela Universidade de Paris XIII(Sorbonne), professor da UERJ-Universidade do Estado do Rio de Janeiro, ex-economista do BNDES
A base social do lulismo é também de uma consistência duvidosa. Ela aparenta, segundo a maior parte das análises, estar ancorada em dois pés : o bolsa-familia – poderoso instrumento de combate à miséria- e as políticas que tenderam a favorecer a ascensão da chamada “nova classe média”.
O bolsa-família – que foi uma adaptação ao Brasil de uma política defendida pelo Banco Mundial de se focar o combate à miséria em medidas pontuais – representa tudo aquilo a que o PT e Lula historicamente combateram. A genialidade política do Lula consistiu, neste caso, em simplesmente dar um giro de 180 graus no que defendia o PT e em perceber a formidável arma política que tinha em mãos. Tratou-se de uma genialidade do tipo de “ovo de Colombo”, que o Lula transformou em uma fábrica geradora de votos. Por que não o fez o social-democrata Fernando Henrique Cardoso ? Simplesmente porque talvez, na realidade, por sua formação aristocrática, tinha horror aos pobres. Foi capaz de iniciar o programa – que tinha tudo a ver não só com as políticas neoliberais do Banco Mundial mas também com o próprio ideário da social-democracia – mas foi incapaz de ampliá-lo a uma escala efetivamente abrangente e que provocasse impacto significativo (conforme apontei em uma tese de doutorado defendida em 2001 na Universidade de Paris).
Quanto a chamada “nova classe média” , há indícios de que este conceito tem sido utilizado de forma um pouco abusiva. Existe mesmo uma nova classe média ? Como chamar de “classe média” os estratos de renda compreendidos em faixas que apenas se diferenciam dos casos de pobreza relativa ? Ou, na melhor das hipóteses, de insuficiência de renda para um padrão de vida confortável ? A chamada “nova classe média” parece ser integrada pela “velha sofrida classe trabalhadora” que mal se mantém com o nariz fora da linha d’água...O nível de renda familiar aumentou, sim, mais devido ao aumento no número de familiares inseridos no mercado de trabalho do que devido a uma real ascensão econômica e social. Ascensão econômica houve sim de economistas que disputam àvidamente régios contratos de consultoria governamental para demonstrar que tudo vai candidamente bem, no melhor dos governos possíveis... Longe de mim estar criticando técnicos do Ipea, da FGV, do BNDES et caterva...Mas que o fenômeno existe, existe.
Fernando Pessoa disse certa vez : “ Porque eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura”. Corremos o risco de estar subestimando a importancia do fenômeno do lulismo ? Ou, ao contrário, estamos diante de uma superestimação do que seria efetivamente o lulismo ? Estamos tentando examinar os astros com um microscópio ? Ou simplesmente examinando uma formiga com a lente invertida de uma luneta ?
Words, words, words, disse Shakespeare...
*Doutor em Ciências Econômicas pela Universidade de Paris XIII(Sorbonne), professor da UERJ-Universidade do Estado do Rio de Janeiro, ex-economista do BNDES
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