Em duas formas diferentes e diferentes relações com o tempo, o sigilo entrou na agenda política brasileira. Na forma de segredo de Estado, ele aparece nas objeções de Sarney e Collor à divulgação de documentos depois de um prazo de 50 anos. É perfeitamente razoável que se oponham levantando questões de Estado. O surpreendente foi o recuo de Dilma Rousseff, uma vez que o projeto aprovado na Câmara sempre teve o apoio do governo. O outro sigilo classifico de mais indigesto: o dos gastos com as obras da Copa do Mundo. Com esse nem Sarney concorda.
Quando a maioria esmagadora das pessoas entende esse sigilo como sospechoso, torna-se inadequado dizer que foi mal interpretado. Como estamos no universo político, e não das ciências exatas, o razoável é afirmar que diante da interpretação majoritária o governo se explicou mal. São nuances.
Falando diretamente: não passará. Sobretudo num momento em que acaba de cair o chefe da Casa Civil e a Fifa e CBF são acusadas, na Suíça e na Inglaterra, de corrupção. Uma questão de tempo e bom senso para dizer: esqueçam, não está mais aqui quem propõe sigilo para os gastos nessa empreitada, com esses atores.
Já o projeto que estabelece o acesso aos documentos públicos é muito mais amplo do que eventuais vazamentos revelando que obtivemos terras da Bolívia, escalpelamos os paraguaios na guerra ou compramos o seu governo no projeto de Itaipu. A quebra desse sigilo é fundamental, reconheço, para os historiadores e a afirmação da maturidade democrática brasileira. O argumento que Dilma apresenta para justificar seu recuo, objeção do Itamaraty, é surpreendente. Nossos diplomatas não podem dizer, parodiando Drummond: os amigos não me disseram que havia uma comissão. E havia. O presidente era do PT, José Genoino; o relator, do PMDB, Mendes Ribeiro. Mais do que isso, o Itamaraty não poderia ignorar que o governo marchava nessa direção e que Dilma, já candidata, fez um discurso público a favor do projeto.
Quem faz pressão pública para que o governo volte atrás? Sarney e Collor. Um presidente que todos nós criticamos, outro que todos nós derrubamos. Mais fácil seria dizer a eles que a democracia brasileira vive um outro tempo, que suas observações são ponderáveis, mas seguiremos com nossos prazos para o sigilo. O problema é que o curto-circuito introduzido por Sarney-Collor obscurece a importância do projeto não só para a opinião pública, como também para o indivíduo.
A partir dele, o Estado terá de montar uma estrutura para atender às demandas de informação. Quando discutíamos o tema na Câmara, aprendemos que os EUA gastam US$ 300 milhões anuais para satisfazer às perguntas que chegam e honrar o compromisso de garantir acesso.
O primeiro obstáculo a ser vencido é do sigilo eterno. Mas, infelizmente, depois de vencido, a luta estará apenas começando. É mais fácil para o governo anunciar que aprovou a lei de acesso aos documentos públicos e afirmar que, nesse ponto, o Brasil se equipara a outras democracias.
Vai haver uma rápida celebração. Mas, e depois, quando as pessoas quiserem, realmente, utilizar o seu direito de saber? Estaremos preparados para isso?
Numa tentativa - desesperada, creio eu - de desqualificar o projeto, Sarney afirmou que o Brasil não se poderia expor ao WikiLeaks sobre sua História. Nada mais inadequado que essa comparação. O WikiLeaks obtém informações contra a vontade dos governos, sem se preocupar com a dimensão legal de sua obtenção. O projeto brasileiro prevê as formas legais de acesso, determina os prazos para a abertura dos arquivos. É, na verdade, um antídoto contra vazamentos, uma vez que oferece os documentos. Nos casos em que isso não for possível, a pessoa interessada ficará sabendo, claramente, quanto tempo falta para conhecer os dados.
Muitos não conhecem o poder da informação. Ou nem mesmo calculam como na sua vida, em determinado momento, pode ser essencial obter do governo um certo documento. Houvesse essa compreensão, certamente teríamos algumas marchas pelo acesso aos documentos oficiais.
A presidente Dilma tentou confortar a crítica ao seu recuo afirmando que os documentos sobre a ditadura militar não podem gozar de sigilo. Tudo bem, mas não devemos utilizar a ditadura como uma espécie de biombo. O que está em jogo não é apenas o conjunto de documentos sobre aquele período. É toda a vida do País, do fim até o começo.
Ditadura, Guerra do Paraguai, consolidação das fronteiras, tudo isso é muito interessante e vai dar excelente debate entre historiadores e acadêmicos. Mas a questão central é aqui e agora. São as demandas que os jornais fazem na Justiça para terem acesso a documentos que o governo esconde, são as dúvidas que um indivíduo, às vezes, tem para definir sua trajetória.
A história dos documentos secretos ligados às fronteiras nacionais ou mesmo às guerras do passado pode se transformar numa espécie de bode na sala.
No mesmo momento em se discute o sigilo com retórica de estadistas, a Câmara aprova o segredo nas contas da Copa do Mundo, o governo não diz quanto gastará para pôr o projeto de acesso em funcionamento, nem monta a estrutura necessária para que ele funcione no cotidiano.
Gravada também por João Gilberto, que faz 80 anos, uma canção popular brasileira diz que segredo é pra quatro paredes e o peixe é pro fundo da rede. Mas o segredo da canção é entre amantes que compartem a mesma casa. Não há segredos eternos nas questões públicas.
Por acaso, a ministra Ideli Salvatti deixou a Pesca e, ao assumir Casa Civil, comunicou o recuo de Dilma no caso do sigilo. Não sei se um dia ouviram a canção, mas, seguramente, estão em conflito com ela. O segredo para quatro paredes não é uma questão do governo. E o peixe no fundo da rede, bem, essa é mensagem mais inequívoca, mas parece que a ministra Ideli não a entendeu, a julgar pela sua passagem pelo Ministério da Pesca.
Jornalista
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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