A recente crise no Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro poderia ter sido evitada com um mínimo de previsão, bom senso e diálogo. O desvio de função, retirando-os da Defesa Civil para tapar buracos na Saúde, a persistência de um padrão salarial degradado e a falta de diálogo levaram à quebra de hierarquia e a formas de luta questionáveis. No final, fica um desgaste persistente que se refletirá na qualidade desse serviço vital para a população. Essa crise foi uma antecipação, em escala local, do potencial tsunami institucional que se avoluma no horizonte do Brasil resultante da má gestão político-institucional da PEC 300, que nivela os salários de policiais militares, civis e bombeiros do país aos da PM do Distrito Federal.
O Ministério do Planejamento adverte que isso custaria mais de R$50 bilhões, e que não só os estados não teriam condições de pagar, como o governo federal não conseguiria apoiá-los para tanto. Isso, porém, não impediu a base parlamentar do governo Lula de ter, em ano eleitoral, votado massivamente a PEC 300, aprovando-a nas duas casas legislativas com uma mudança no Senado que obriga a fazê-la passar novamente na Câmara - onde, agora, a bancada do governo está instruída a não deixá-la prosperar. Já se esboça uma forte mobilização de policias, existe no ar uma intensa sensação de frustração com acusações de traição ao governo e à sua base parlamentar. Os setores mais fisiológicos da base governista já saboreiam essa nova gota de sangue no mar de tubarões. Corremos o risco de mobilizações de rua de policiais civis, militares e bombeiros, confrontos, motins, numa escala inédita.
O governo não vai escapar de algum grau de concessão para pagar o preço de ter lidado com a questão de forma eleitoreira em passado recente. É de um cinismo sem limites terem votado por conveniência eleitoral o que hoje consideram algo "totalmente inviável". Detalhe: não o fizeram com aquela relativa irresponsabilidade facultada à oposição, mas como base de governo. Em política pública isso tem custo alto. Aqui se faz, aqui se paga.
Mas há um lado de oportunidade em qualquer crise. A inevitável explosão em torno da PEC 300 abre oportunidade para rediscutir a fundo a histórica desfuncionalidade da carreira policial no Brasil. A questão das "escalas de serviço", do duplo emprego, das nossas polícias de "bico", a part time, onde a segurança pública acaba ocupando a parte menor do tempo dos nossos policiais civis e militares, e a maior acaba dedicada a outra atividade remunerada frequentemente vinculada à segurança privada. Isso produz falta de efetivo, má qualidade de serviço e de adestramento e estimula toda espécie de desvios. Cabe uma discussão séria e um eventual sacrifício orçamentário de outros gastos de governo. Pequeno exemplo: acabamos de passar cerca de meio bilhão de reais de incentivo fiscal a usinas nucleares, na MP 517. O padrão disposto na PEC 300 teria como contrapartida a dedicação exclusiva dos policiais à segurança pública, com o fim do duplo emprego. O tempo livre, resultante dos atípicos horários de trabalho policiais, ficaria dedicado ao adestramento e à formação profissional permanente. Isso passaria também pela instituição de um fundo nacional de segurança mais abrangente que, à semelhança do Fundeb, possa complementar salários apoiando os estados. Nada disso será simples. Mas a qualquer momento periga virar urgência urgentíssima...
Aldredo Sirkis é deputado federal (PV-RJ).
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