Para Marco Aurélio Nogueira, quanto mais democrático, republicano e sensível o governo for, mais chance teremos de ele ser uma espécie de líder da sociedade para o ataque aos problemas sociais que são os mais dramáticos hoje
Por: Graziela Wolfart
Para Marco Aurélio Nogueira, Dilma Rousseff “dedicou 2011 a fazer um estudo de como converter um modo político popular de governo em um modo mais técnico e político. Lula governou de um modo político popular. Ela, por estilo, por opção, por personalidade, quer fazer um governo que tenha uma natureza mais técnico-política, que se preocupe mais com gestão, com controle e com o caráter de políticas, coisas que aconteciam no governo Lula, apesar dele”. Em entrevista concedida por telefone para a IHU On-Line ele afirma que “deveriam existir limites programáticos, éticos, políticos, mas o sistema em que se vive no Brasil torna muito difícil a obediência a esses limites, de modo que a coalizão acaba sendo tão necessária para os governos que acabam aceitando como parceiros tudo aquilo que está disponível, e não aquilo que é selecionado em função de critérios políticos, programáticos. Daí fica-se até em dúvida para saber quem é oposição e quem é situação”.
Marco Aurélio Nogueira é doutor em Ciência Política, pela Universidade de São Paulo – USP. Obteve o título de pós-doutor na Università degli Studi La Sapienza, em Roma. Atualmente é professor da Unesp. Também é autor de Um Estado para a sociedade civil: temas éticos e políticos da gestão democrática (São Paulo: Cortez Editora, 2005) e Em defesa da política (São Paulo: Editora Senac, 2005), entre outras obras.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – De forma geral, como avalia o primeiro ano do governo Dilma?
Marco Aurélio Nogueira – O primeiro ano foi de transição e de tentativas de ajuste do governo às características políticas de Dilma. Ela procurou usar o primeiro ano do mandato para fazer com que o governo tivesse a “cara” dela. Dilma recebeu uma espécie de legado dos oito anos do governo Lula. E isso acabou, por um lado, facilitando a sua vida, já que ganhou a eleição, de certa maneira, beneficiada também por esse fator, e, por outro lado, acabou por comprometer um pouco da sua movimentação, já que o “legado Lula” é pesado, não é só de coisas boas. Não que tenham sido transferidos para ela muitos problemas, mas foi transferido para ela o carisma de Lula. Esperava-se que ela fosse o “Lula de saias”, como muitas vezes se fala. Ela não teve condições de governar segundo um “modo Dilma de ser”. Está tentando isso ainda. O primeiro ano foi um período que ela usou para testar um pouco os espaços que tem para esse tipo de movimento. Ela dedicou 2011 a fazer um estudo de como converter um modo político popular de governo em um modo mais técnico e político. Lula governou de um modo político popular. Ela, por estilo, por opção, por personalidade, quer fazer um governo que tenha uma natureza mais técnico-política, que se preocupe mais com gestão, com controle e com o caráter de políticas, coisas que aconteciam no governo Lula, apesar dele.
IHU On-Line – O “coronelismo”, tal qual interpretado na transição dos séculos XIX e XX, já não existe, mas continua presente até os dias de hoje como se vê na coalizão de governo em que ministros são oriundos de oligarquias. Por que o Brasil não consegue romper com as forças conservadoras e atrasadas? Elas são necessárias para se governar o país?
Marco Aurélio Nogueira – São necessárias e importantes na vida do país. O que nós chamamos de atraso tem que ser incorporado às práticas de governo para que a democracia não corra o risco de ver crescer, em uma de suas margens, qualquer obstáculo para o prosseguimento do processo democrático. É preciso incorporar tudo, falando de forma mais abstrata. A política de estado tem que ser um movimento de incorporação. O próprio sistema democrático tem regras para fazer isso. Entendo o processo político como um movimento de inclusão. A questão é saber como se incorporam forças atrasadas e conservadoras sem prejudicar as forças progressistas. Esse é um jogo difícil de ser resolvido teoricamente. É operação política do dia a dia e que passa pela habilidade do governante. Essa é uma questão que está posta no Brasil desde sempre. Nossa forma de progredir tem uma marca particular, que é justamente a de ter sido feita sem o esmagamento ou a neutralização radical das forças conservadoras. Sempre incorporamos as forças conservadoras mediante a atenuação das reformas. Mesmo assim nós progredimos, ou seja, não foram as concessões que impediram o progresso; elas apenas o condicionaram.
Coronelismo
Acho que nós não temos mais uma situação coronelista no Brasil. O coronelismo é um arranjo entre o poder público e o poder privado de certos latifundiários; e um pacto desse tipo acabou por facilitar uma série de coisas no Brasil. Mas esse processo acabou. Os políticos conservadores, que têm força no Estado brasileiro, não são coronéis. Eles são outra coisa. Podemos dizer que eles, de certa maneira, privatizam o espaço público, a política estatal e o governo, ocupando espaços indevidos. E fazem isso por conta da força econômica e eleitoral que têm. Mas aí temos muita gente que faz o mesmo tipo de operação. Temos ministros que não são oriundos de oligarquia e que são tão nefastos para a vida governamental e democrática quanto os que são. Essa ocupação indevida e essa presença de forças que não são propriamente republicanas na vida do governo é algo que vai além do conservadorismo. E o conservadorismo que está presente nessas posições oligárquicas não tem sido capaz de impedir o progresso do Brasil.
IHU On-Line – Há limites para a coalizão de governo?
Marco Aurélio Nogueira – Deveriam existir limites, e eles até existem, mas são tênues, fracos, sem uma linha demarcatória clara. Tudo está sendo possível. E isso vem lá de trás. Tem a ver com o governo Dilma, com o governo Lula, com o governo Fernando Henrique. Todos eles tiveram muitas dificuldades e, até certo ponto, perderam essa briga no que diz respeito a fixar limites para a coalizão. Não conseguiram. Penso que deveriam existir limites programáticos, éticos, políticos, mas o sistema em que se vive no Brasil torna muito difícil a obediência a esses limites, de modo que a coalizão acaba sendo tão necessária para os governos que acabam aceitando como parceiros tudo aquilo que está disponível, e não aquilo que é selecionado em função de critérios políticos, programáticos. Daí fica-se até em dúvida para saber quem é oposição e quem é situação.
IHU On-Line – Isso não acaba enfraquecendo os partidos?
Marco Aurélio Nogueira – Lógico que acaba! É uma coisa muito louca isso. Enfraquece, mas, ao mesmo tempo, é o oxigênio que os partidos precisam para continuar vivos. Uma dimensão é a lógica do governo, que precisa dos partidos para ganhar maioria, ter condições de aprovar projetos, ganhar a chamada governabilidade. Por outro lado, os partidos também precisam das alianças, da coalizão, porque, no Brasil, eles se tornaram muitos estatalizados, muito pouco societais, ficando muito dependentes do controle de determinados recursos que são dados pelas posições de governo. Um partido que não tem controle de certos recursos políticos perde competitividade na sociedade, e nem precisa ser necessariamente na escala federal. Por exemplo, o PSDB está fora do governo federal há dez, 12 anos, no entanto, ele controla alguns governos estaduais e acaba detendo controles políticos importantes. No caso de partidos que se preocupam de modo particularmente forte com valores, programa, identidade, esse modo de fazer coalizão é uma tragédia. No caso do PT, na medida em que ele se entregou a esse jogo de coalizão, perdeu muito em termos do que pretendia ser quando surgiu.
IHU On-Line – Nesse sentido, o PT perdeu a capacidade de inovação?
Marco Aurélio Nogueira – Perdeu a capacidade de inovação tanto para a política do governo como para ele enquanto partido. O PT não se renovou, pelo contrário, estagnou. E se tornou um partido igualzinho aos outros, que não coloca mais como ponto de honra ser diferente. Mas tudo bem. Nunca achei que os partidos têm que ser diferentes. O ideal seria que todos os partidos fossem igualmente criteriosos, com programas, mesmo que uns fossem de direita e outros de esquerda. O ruim é quando todos se transformam nessa pasmaceira que estamos vendo. As diferenças não aparecem de maneira interessante e rica no debate público. O PSDB também se prejudicou com isso. Mas ele tem a característica histórica de ser um partido socialmente fraco, sem muitas pretensões. Já o PT tinha a pretensão de ser um partido social, com militância, bases, capilaridade, com gente que não tem cargo, mas que faz política. Enquanto que o PSDB sempre quis ser um partido com algumas pessoas especiais, qualificadas.
IHU On-Line – Quais seriam as possíveis soluções democráticas consistentes para os problemas que estão emergindo no Brasil atual? O que podemos esperar do governo Dilma nesse sentido?
Marco Aurélio Nogueira – Podemos esperar muita coisa do governo Dilma, sobretudo porque ela está se propondo (pode ser que ela não consiga) a dar um maior valor à dimensão técnica, gerencial no seu governo. Isso pode ajudar o governo Dilma a ganhar um posicionamento bom no país, levando em conta o fato de ser a Dilma quem é e do PT ser quem é. No entanto, não será um governo tecnocrático. Será um governo com maior preocupação técnica, o que pode ser um recurso importante para se ter uma política democrática. O grande problema que temos é o social, no sentido da desigualdade de renda. Isso exige uma solução que seja maior do que as políticas assistencialistas que têm sido feitas nos últimos anos, e aqui estou me referindo basicamente ao Bolsa Família, que foi o grande fator do qual se obteve ganho em termos de inclusão social no Brasil recentíssimo. O outro lado foi da política de crédito, que aumentou o poder de consumo das pessoas. Tanto uma (o Bolsa Família) como a outra (o crédito popular) não podem ser políticas de voo longo. A política de crédito tem um risco muito grande de ser suicida, porque ela pode, dependendo de como o resto vai andar, levar o tomador de empréstimo à inadimplência. Dessa forma, torna-se a pior solução de todas, porque não só o cidadão não terá mais crédito como também ficará com uma dívida que não conseguirá pagar.
IHU On-Line – Principalmente por causa dos prazos longos...
Marco Aurélio Nogueira – Exatamente. Para se obter um bom financiamento, prolonga-se o prazo: 60 meses, dez, 20 anos. Hoje em dia não se pode dizer que daqui a um ano vai dar para continuar pagando um empréstimo feito. Isso falando de uma pessoa que não tem muita “bala no revólver” para se jogar no mercado financeiro (estou “me lixando” para os que têm). Para quem ganha pouco, trabalhar com empréstimo e financiamento é complicado, visto que o emprego é instável e, de repente, numa virada econômica qualquer, pode perder o emprego. Esse é um critério do mundo em que vivemos. Todo mundo passou a ter empregos flutuantes. Pode ter hoje, não ter amanhã; não se tem muita margem de segurança. E a política assistencial também é assim, porque até quando o governo vai continuar transferindo X milhões de reais para os necessitados? Uma hora isso vai bater no teto também. E será preciso financiar o Bolsa Família. O melhor que os governos podem fazer é se comportar democraticamente. As soluções democráticas que podem vir do governo têm a ver com a conduta democrática dele. Quanto mais democrático, republicano, sensível o governo for, mais chance teremos de ele ser uma espécie de líder da sociedade para o ataque aos problemas sociais que são os mais dramáticos hoje.
IHU On-Line – Como a tensão entre representação e participação aparece no governo Dilma?
Marco Aurélio Nogueira – Acho que não aparece, para ser franco. No entanto, ela existe na sociedade. Porque, por um lado, há uma crise de representação, o que significa dizer que as pessoas não confiam muito nos seus representantes, e, por outro lado, há um certo desejo de participação, que é uma espécie de efeito colateral do modo como se vive atualmente. Esse modo exacerba a movimentação das pessoas. Nós todos somos pessoas inquietas. Não gostamos muito de ordens, ainda que acabamos por comprá-las. Não gostamos muito de receber um pacote de decisões e gostamos de nos movimentar fisicamente, quando possível, e nos movimentamos freneticamente no plano virtual. Isso tudo funciona como uma espécie de êmulo de participação, ainda que não seja necessariamente participação política.
IHU On-Line – Pensando na relação com os movimentos sociais e outras instâncias da sociedade civil, como o senhor avalia que Dilma tem reagido diante das capacidades coletivas de reação e emancipação no Brasil?
Marco Aurélio Nogueira – Em primeiro lugar, precisaríamos chegar a um acordo sobre quais são as capacidades coletivas de reação e emancipação no Brasil. Essas capacidades, que evidentemente existem, não estão sendo muito bem utilizadas no Brasil e estão meio adormecidas. Não estamos vivendo uma fase de ativação dos movimentos sociais. Eles existem, estão aí, mas teríamos que gastar um tempo para nomeá-los. Os governos têm que ser flexíveis em relação aos movimentos sociais, pois a sociedade está fragmentada, há muita insatisfação em várias áreas no que diz respeito à representação política, há um clima potencial de exacerbação de insatisfação. No momento, o que o governo Dilma está fazendo com relação aos movimentos sociais é conversar com eles quando aparecem.
IHU On-Line – Mas o senhor percebe uma abertura por parte do governo Dilma em relação aos movimentos sociais?
Marco Aurélio Nogueira – Depende de qual é o parâmetro que temos. Se for em relação aos primeiros meses do governo Dilma, a resposta é que parece que ela está sendo mais sensível. Se for em relação ao governo Lula, eu diria que não, já que o governo Lula era bastante aberto para os movimentos sociais, talvez mais do que a Dilma. O que não significa que o governo dele tenha sido melhor que o dela. Não é só porque você é mais flexível com os movimentos sociais que vai governar melhor. Mas é claro que se for repressor dos movimentos sociais já fica excluído do bom governo. Nós não temos notícia de que os governos brasileiros têm sido particularmente duros com os movimentos sociais. Posso dizer isso porque os movimentos no Brasil não têm sido particularmente ameaçadores. Estão contidos, ou pela sua dificuldade de organização ou pelas dificuldades estruturais de agir no mundo capitalista em que vivemos.
FONTE: IHU On-Line
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