Ele é negro. Acima de qualquer dúvida razoável, como dizem os juízes. Ele é
negro e não contemporiza para facilitar sua aceitação. Joaquim Benedito Barbosa
foi eleito ontem presidente do Supremo Tribunal Federal. Elogiou-se a rotina de
eleição pelos pares e a alternância no cargo. Ainda melhor será o momento em
que o fato de um negro estar lá nem notícia será, de tão rotineiro.
É assim que o país avança: quebrando paradigmas. O ministro Joaquim vai
errar e acertar nos próximos dois anos, como nos últimos nove. Seus
antecessores também erraram e acertaram. Não é herói - ele até se define como
anti-herói - mas virou símbolo de um avanço extraordinariamente importante para
o Brasil. O espaço maior que vem sendo ocupado pelos negros em instâncias do
poder, até hoje majoritariamente brancas, é uma vitória que pertence ao país
como um todo. Multiétnico e miscigenado, o Brasil ainda assim criou distâncias
sociais e as manteve com a mais eficiente das estratégias: negar a existência
da discriminação.
Joaquim votou no PT nas últimas três eleições, como revelou à jornalista
Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo, e hoje é relator do processo que está
condenando lideranças emblemáticas do partido. Foi capaz de separar de forma
cirúrgica sua convicção técnica de juiz de quaisquer outras considerações que
poderiam interferir em sua decisão.
O ministro tem uma história de vida de superação. Foi pobre, construiu sua
ascensão pela educação, se globalizou indo para algumas das melhores universidades
da Europa e dos Estados Unidos. Tem currículo invejável e competência
inequívoca.
Debruçou-se, entre outros temas, sobre uma política pública que no Brasil
ainda produz muita controvérsia: a ação afirmativa. Poderia fugir do assunto
por temer ser instalado num gueto teórico. Poderia negar, com sua história de
vida de superação, que este seja o melhor caminho para a construção de um país
com uma elite também multiétnica. Mas estudou ação afirmativa, escreveu um
livro técnico defendendo a política e não ficou preso ao tema. Quando a ação
das cotas chegou ao Supremo Tribunal Federal, seu livro foi citado, por
exemplo, no voto do ministro decano Celso de Mello. Ao fim, as cotas foram
aprovadas por unanimidade, porque o voto do ministro relator Ricardo Lewandowski
foi seguido por todos.
Não há uma contradição entre o caminho que o levou ao topo e as ações
afirmativas que tornarão o Brasil, no futuro, um país em que outros vençam as
barreiras que ele venceu. O currículo dele foi construído com muito esforço, mas
nenhum presidente antes do Lula viu méritos em outros juízes negros. A
invisibilidade do discriminado é uma arma antiga para manter as distâncias
sociais. Se o ex-presidente Lula tivesse ficado prisioneiro da mesma armadilha
de ver os méritos apenas do grupo dominante, o Supremo, talvez, fosse ainda
hoje um monopólio dos brancos. Joaquim, como lembrou Celso de Mello, é o 50º
presidente da Corte desde o Império, o 44º da República. E será o primeiro
negro a se sentar na cadeira de presidente.
Muitos dizem que o importante não é que ele é negro é que tem méritos. Sem
dúvida. Mas por que houve uma tão longa fila de meritórios apenas brancos?
Porque não houve igualdade de oportunidades.
Há dez anos um blog do jornal Washington Post pediu a jornalistas de vários
países que escrevessem quais eram as forças emergentes em cada país que teriam
mais poder em 20 anos. Escrevi que no Brasil essas forças emergentes eram as
mulheres e os negros. Hoje, o Brasil é presidido por uma mulher e, em breve, o
Judiciário, por um negro. O Brasil muda para melhor.
Fonte: O Globo
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