domingo, 14 de julho de 2013

Uma fábula do protesto de junho - Vinicius Torres Freire

'Povo das ruas' vai se olhar no espelho quando invadir o Castelo do Tudo-Que-Está-Aí

A queixa velha sobre impostos excessivos em troca de serviços públicos ruins tornou-se uma fórmula chocha que tentou traduzir a "voz das ruas". Fez par com a "crise de representação" ou "os políticos não me representam".

Somados, os dois lemas sugerem que no fim desse arco-íris com sete tons de cinza ("tudo que está aí", "políticos") há um pote de ouro a ser aberto e dividido para o bem geral.

No que vai dar um protesto que marcha para abrir as cadeias da Bastilha (o "governo") e descobre que há lá só uma dúzia de presos, em vez de milhares de vítimas dos "políticos" da corte de Versalhes?

Talvez os impostos não sejam tantos assim. Ou melhor: os impostos não são recolhidos com o fim de prover "serviços públicos de qualidade".

Os impostos federais pagam aposentados, salários e aposentadorias dos servidores, juros da dívida, benefícios sociais para miseráveis e coisas como seguro-desemprego. E o dinheiro acabou. O resto, para bancar "educação, saúde e transporte de qualidade", é muito pouco e já é deficit, financiado com dívida.

Tal sistema é feito de camadas arqueológicas do conflito social, aberto ou camuflado. Servidores, que inventaram o Estado e o jeito brasileiros de desenvolvimento (1930-1985), se criaram benefícios nem tão privilegiados assim, mas muito superiores ao do padrão médio de vida (tal Estado também bancou a criação da grande empresa nacional e beneficiários dela, a velha classe média).

Parte do INSS, benefícios para miseráveis e outras melhorias advindas, aos poucos, com a Carta de 1988 foram um remendão que mantém um mínimo de estabilidade sociopolítica num país pobre que tenta ser democrático em um regime de extrema desigualdade e violência. Sem isso, viveríamos em tumulto constante ou coisa pior.

Os juros da dívida remuneram a poupança das famílias muito ricas, ricas e remediadas ("fundos" de banco, por exemplo. No grosso, quem tem alguma poupança recebe juros da dívida).

De onde vem a dívida? Ficou enorme no esforço de estabilizar a economia (acabar com a hiperinflação, anos 1990) sem causar ruptura política ou social maior. Continuou a crescer com deficit para manter o sistema funcionando.

A inflação foi um meio de acumular capital para o Brasil desenvolvimentista, de concentração de renda, de bens para a "nova classe média" dos anos 1960-70 (outro meio de acumular capital, também tirado dos pobres, foi a repressão pura, pau nos trabalhadores peões).

Na fábula dos protestos de junho, o povo das ruas invade a Bastilha ou Versalhes e, sim, descobre que "políticos" e seus clientes (empresas e ricos) levam algum extra.

Mas, lá no fundo do castelo, o povo das ruas vai descobrir que, no grosso, paga para si mesmo, para seus avós aposentados, para acalmar miseráveis, para o subsídio da sua casa ou bens de consumo. Vai descobrir que, enfim, recebe de volta quase tudo que paga, de modo distorcido e desigual, decerto; quem recebe menos é o povo dos cafundós de cidades e sertões.

O povo das ruas vai descobrir que o pote de ouro é pequeno; que redividi-lo vai exigir conversa ou conflito. Talvez descubra que boa parte do ouro não está no castelo estatal.

No fundo desse castelo do "tudo que está aí", enfim, tem um espelho.

Fonte: Folha de S. Paulo

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