- O Estado de S. Paulo
De repente, a bola chegou quadrada aos pés de Eduardo Campos: rever ou não rever o manifesto do PSB, datado de 1947, cujo item 7 prega que o objetivo do partido no terreno econômico "é a transformação da estrutura da sociedade, incluída na gradual e progressiva socialização dos meios de produção, que procurará realizar na medida em que as condições do País a exigirem".
O pré-candidato à Presidência da República se vê no meio de uma enroscada. De um lado, empresários do campo privado temerosos de que a pelota seja chutada para os braços de Karl Marx; de outro, correligionários duros, que não admitem tesoura para cortar documento histórico. A par do simbolismo implícito no texto que ainda prega a "manutenção da propriedade privada nos limites da possibilidade de sua utilização pessoal, sem prejuízo do interesse coletivo", o documento suscita a indagação: de que social-democracia o Brasil necessita e que peculiaridades devem ser examinadas nas propostas dos candidatos à Presidência da República? Essa é a questão em jogo, ainda mais quando o tema da concentração de renda e igualdade social ganha o foro mundial, a partir do livro do francês Thomas Piketty, Capital no século XXI. Ao traçar o histórico da concentração de renda nos últimos três séculos, ele mostra que os ricos ficam cada vez mais ricos e a desigualdade fica cada vez pior.
O fato é que nossa social-democracia carece de aperfeiçoamentos. A título de lembrança, tal modelagem começa a tomar corpo a partir da ofensiva liberal conservadora que impacta o País nos anos 70, ganha corpo na onda de organização dos movimentos sociais impulsionados pela Constituição de 1988 e resulta na ampliação dos direitos coletivos, base do Estado do bem-estar.
Não se trata, como alguns podem imaginar, de opor as bandeiras do socialismo clássico às do liberalismo ortodoxo. Trata-se de alinhar o sistema ao espírito do nosso tempo. Ganhando consistência progressiva entre 1919 e 1939, na Europa, sob a égide das identidades regionais e revisões constantes do escopo socialista, a social-democracia ganhou nuances aqui e ali, sem romper os pressupostos econômicos, políticos e sociais do liberalismo. Elege o Estado como regulador da economia, coisa necessária para corrigir desequilíbrios causadores de crises, aliás, na esteira das lições de John M. Keynes.
O modo de produção capitalista, por sua vez, atravessou um longo corredor de mudanças. As organizações foram instadas a ampliar a pletora de direitos dos trabalhadores. A configuração do mundo do trabalho adquiriu novos contornos com a multiplicação de micro e pequenos negócios, abrindo aos trabalhadores acesso ao território dos empreendimentos. Nesse ambiente, a social-democracia incorporou transformações nas esferas organizativas, políticas, econômicas e sociais. Ao perceber a impossibilidade de um só partido juntar mais de 50% dos votos de um país e chegar, sozinho, aos píncaros do poder, passou a agregar alianças. E a coabitar. Na França, pôde-se ver um presidente socialista (François Mitterrand) convivendo com um primeiro-ministro da direita conservadora (Jacques Chirac); ou um presidente direitista (Chirac) ao lado de um primeiro-ministro socialista (Lionel Jospin). A clássica luta de classes abriu vez para a conciliação entre grupos e classes; a esfera dos trabalhadores estendeu seus domínios, agora integrando as classes médias (com profissionais liberais), e não apenas os peões do chão de fábrica. Os partidos de massas substituíram os classistas.
Dito isso, cheguemos ao panorama brasileiro. Que caráter e programas devem ancorar nosso sistema social-democrata? O pressuposto inviolável, intransferível, imutável é o compromisso com o Estado do bem-estar. Em outros termos, o sistema deve desenvolver uma economia viável, ajustada aos parâmetros do território, capaz de beneficiar todas as parcelas da população e endossada por partidos que se juntem em aliança para implantar programas consensuados.
Tal ideário não pode desequilibrar o orçamento público ou ancorar políticas populistas. Esse é o ponto de atenção. Urge enxugar a máquina administrativa usando critérios racionais e dar ao Estado o tamanho adequado para cumprir suas tarefas. Fernando Henrique tentou diminuir a extensão da máquina. Foi acusado de privatista. O ciclo Lula voltou a inchar a máquina com milhares de contratações. Mas não desconstruiu os pressupostos liberais. Na era Dilma, o Estado é considerado "mais intervencionista". Afinal, que instrumentos o Estado deve dispor para preservar seu papel de regulador da economia, promover o bem-estar e orientar a iniciativa privada no caminho do bem comum? Ampliar ou não as Parcerias Público-Privadas (PPPs) a concessão de serviços públicos e impor limites à privatização de bens públicos? O que cabe em nossa social-democracia? Com a palavra, os postulantes à Presidência da República.
É hora de atribuir a cada qual o que lhe pertence. É inegável que o braço assistencialista dos anos PT contribuiu para acelerar a dinâmica social. Da mesma forma, as estacas do Estado atual foram fincadas na era tucana do Plano Real. Outro ajuste seria nos vãos do nosso presidencialismo. A Tríade do Poder parece torta. O sistema presidencialista, com extrema concentração de força, precisa diminuir seu ímpeto legislativo. Tudo passa pela tinta da caneta do mandatário-mor, que mora na fortaleza que distribui verbas, cargos, empregos e favores.
Todo esforço se fará necessário para atenuar aquilo que José Murilo de Carvalho chama de "estadania", contraponto à cidadania. A organicidade social, a constelação de entidades que se transformam em novos polos de poder, as manifestações de rua abrem um amanhã para a democracia participativa, cujo papel é o de fazer pressão sobre a democracia representativa.
Nota de pé de página: não há por que temer o manifesto de 1947 do PSB. O mundo girou, e muito, desde os tensos anos da guerra fria.
*Jornalista, é professor titular da USP
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