• Os caciques do PMDB resolveram preservar Dilma. Não é por lealdade a ela. É por interesse próprio
Leandro Loyola – Época
Entre as muitas reuniões que manteve na semana passada, o vice-presidente da República, Michel Temer, teve tempo de confidenciar a um amigo seu desconforto. Os dois políticos tratavam, óbvio, do que todos falavam em Brasília - as possibilidades postas na mesa de, diante da crise, a presidente Dilma Rousseff não terminar seu mandato. Sempre discreto e com meias palavras, inclusive com os mais próximos, Temer se permitiu dizer que "não se sentiria confortável" se tivesse de assumir o comando do país numa conjuntura como a atual. Temer não desperdiça palavras. Formal até nesses contatos, ficou claro que usou o argumento para transmitir um recado incisivo: vai rechaçar qualquer especulação sobre um possível afastamento de Dilma antes da transmissão do cargo, em 2019. Mas só o fato de essa possibilidade ser tema de uma conversa a sério, com Temer, demonstra o grau de incerteza a que chegou o Brasil - e o risco a que está submetido o mandato de Dilma.
Para evitar essa derrocada, o combalido governo Dilma depende cada vez mais de Temer e dos outros dois políticos mais poderosos do PMDB: os presidentes da Câmara, Eduardo Cunha, e do Senado, Renan Calheiros. Sozinha, ou com o PT, Dilma tem mais problemas do que soluções, como ficou demonstrado nos últimos dias. À primeira vista, depender de Renan e Eduardo Cunha significaria que Dilma está liquidada. Renan impõe derrota após derrota ao governo, manobrando os senadores com facilidade. Não só age contra Dilma, como fala abertamente mal dela e do Planalto, quase todo dia. Eduardo Cunha age e fala de maneira semelhante a Renan. Num ambiente político conflagrado, os gestos de ambos parecem indicar que querem derrubar Dilma. Parecem. Na verdade, os dois querem mantê-la no cargo, embora fraca — cada vez mais fraca. Quanto menos poder Dilma acumular, mais poder sobrará para os dois. E, a depender das circunstâncias desse enfraquecimento, para Temer também.
O equilíbrio político perseguido por esse tripé da estabilidade institucional impedirá que a ameaça do impeachment suba a rampa do Planalto. A não ser que fatos fora do controle deles mudem o curso da história do segundo mandato de Dilma. O PMDB não controla as investigações da Lava Jato. E não controla, sobretudo, a presidente. Conforme a crise se agrava, a inescrutável inabilidade política de Dilma desafia os cálculos até de quem pouco ou nada espera dela. Na semana passada, Dilma reagiu mal a discursos proferidos numa convenção do PSDB, especialmente pelo senador Aécio Neves (leia reportagem na página 36), e às pressões vindas de processos tocados no Tribunal de Contas da União e no Tribunal Superior Eleitoral - que embutem a possibilidade de a Justiça cassar-lhe o cargo.
Ao tentar dar uma demonstração de força, Dilma escorregou no raciocínio e nas palavras. Não só amplificou a crise latente como revelou quão palpável é para ela mesma a chance de ser tirada da Presidência por irregularidades cometidas em seu primeiro mandato ou por um crime eleitoral. Deu uma entrevista desastrosa à Folha de S.Paulo. Nela, diminuiu-se de todas as maneiras possíveis. Criticou indiretamente um juiz de primeira instância (Sergio Moro) e admitiu a existência do movimento pelo impeachment ("Eu não vou cair. Eu não vou, eu não vou. Isso aí é moleza, é luta política".). Acusou o golpe — ou golpismo, nas palavras dela (leia a coluna de Ruth de Aquino na página 82). Foi belicosa, num momento em que o país precisa de conciliação e união. Se alguém ainda não falava em impeachment, Dilma tratou de botar o assunto na roda. Chamou a crise para si com incomum eficácia.
Temer agiu publicamente para desfazer o estrago provocado pelas palavras de Dilma. Falou que não há chance de quebra de ordem constitucional. Disse o que todos precisavam ouvir, aproximando-se da oposição: "Temos de fazer uma grande unidade nacional"" Logo após a volta da viagem aos Estados Unidos, no final da semana anterior, Temer conversara com Dilma no Palácio da Alvorada. Fizera algumas sugestões. Trazer de volta as reuniões de articulação política com ministros que estavam afastados, como Jaques Wagner e Aldo Rebelo — o conselho político, grupo do qual eles fazem parte, não se reunia havia quase três meses. Temer sugeriu ainda fazer uma reunião com líderes de partidos da base de apoio, para orientá-los sobre como defender o governo no Congresso diante de um quadro de deterioração política e crise econômica. Surgiu daí a ideia de enviar ao Congresso o ministro do Planejamento, Nelson Barbosa, e o advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, para explicar as "pedaladas" as manobras usadas pelo governo até o ano passado para gastar mais do que poderia e esconder a burla embaixo do tapete (leia a entrevista de Luís Inácio Adams na página 38).
Essas ideias foram colocadas em prática. Mas, entre a sugestão e a ação, o calor da conversa sobre impeachment aumentou. Na segunda-feira, Dilma estava inquieta na reunião com os líderes que a apoiam, no Palácio do Planalto. Dilma passou a maior parte do tempo da reunião, entre 18h30 e 20h45, de pé, andando de um lado a outro ao redor da cabeceira da mesa. Anunciou aos líderes o Plano de Proteção ao Emprego, disse que pediria ao presidente da Câmara, Eduardo Cunha, para adiar a votação de um projeto que muda o sistema de correção do Fundo de Garantia — que gera um aumento de gastos para os cofres públicos e reduz a possibilidade de financiamentos imobiliários - e passou a bola para Adams explicar os argumentos do governo para se defender das "pedaladas", no julgamento do Tribunal de Contas da União, marcado para o dia 22, mas que só deverá acontecer em agosto. Dilma não tocou no assunto "golpismo", como o governo chama as especulações sobre impeachment. Não passou recibo público. Nem precisava.
Até ali, o roteiro traçado com Temer ia bem. Mas, no dia seguinte, saía a entrevista de Dilma. Temer já havia combinado antes uma nova reunião com líderes de partidos que apoiam o governo, para tratar de coisas mais práticas. O clima beligerante, no entanto, entrou pela porta. O presidente do PT, Rui Falcão, chegou ao encontro com o rascunho de um texto de uma nota a ser divulgada na saída. Contudo, tratava-se apenas de uma reunião de trabalho; ninguém havia pensado em divulgar um manifesto. O texto levado por Falcão fazia ataques ao TCU, um órgão do Poder Legislativo, que só está cumprindo sua função, e falava em apoio e "solidariedade" a Dilma e Temer. Rui Falcão, fazendo política ao mesmo estilo de Dilma, só agravaria a crise. "Quanto a mim, não é necessário falar em solidariedade", disse Temer, e lembrou que sempre agradeceu, mas dispensou esse tipo de mesura quando era presidente da Câmara - afinal, explicou, quem precisa de solidariedade assume que está fraco. "Em geral, essas coisas se voltam contra a gente mesmo". Ao estilo petista pintado para a guerra, o texto era um complemento à desastrada fala de Dilma. O PMDB e os aliados começaram, então, o processo de desidratação do texto. Depois de retirar a menção à "solidariedade", foram limadas as pancadas no TCU. "Como podemos nos posicionar contra o TCU, se não há um resultado?", disse o líder do PMDB no Senado, Eunício Oliveira. "Não podemos afrontar. É hora do diálogo" Prevaleceram as sugestões, que resultaram em uma nota genérica, inócua, que falava em compromisso com a Constituição e a democracia. O PMDB, assim, protegeu Dilma da inabilidade de seu próprio partido.
Pelo menos por ora, o PMDB deverá se comportar publicamente como fez na reunião de terça. Não fará nenhum movimento para aderir à iniciativa da oposição de buscar maneiras de tirar Dilma do governo. "Não espere nem um peteleco do PMDB", diz um dos líderes do partido. Os mais comedidos líderes do PMDB avaliam que o governo Dilma é ruim e enfrenta um momento péssimo, graças à falta de liderança política e a uma crise econômica com todos os elementos negativos necessários - inflação, juros e desemprego em alta e retração em vez de crescimento do PIB —, que resultam nos piores índices de avaliação de um presidente em 20 anos (leia o ensaio sobre a crise na página 46). Mesmo assim, quem tem voz de comando no PMDB não enxerga elementos concretos que justifiquem uma cruzada para a saída de Dilma, como havia no caso de Fernando Collor em 1992.
Os caminhos que se colocam para o governo e para os partidários do impeachment de Dilma são longos, desgastantes e traumáticos para o país. O Tribunal de Contas da União deverá adiar para agosto o exame das contas do governo Dilma em 2014, o caso das "pedaladas" fiscais. Em seu relatório, baseado em estudos de técnicos, o ministro Augusto Nardes concluiu que o governo feriu a lei. Ficou claro, para o ministro, que o Tesouro Nacional atrasou repasses a instituições como a Caixa Econômica Federal para o pagamento de programas como o Bolsa Família e Minha Casa Minha Vida, em ano eleitoral. Com isso, os bancos estatais usaram seus próprios recursos para os pagamentos, o que caracterizou empréstimo ao governo federal, proibido pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Por mais que o governo argumente, o abuso nas "pedaladas" pelo governo era público e notório entre técnicos da área econômica. Hoje, é bastante provável que o TCU rejeite as contas de Dilma. Se isso acontecer, o Congresso Nacional, que tem feito do governo Dilma uma presa fácil, terá todos os argumentos para rejeitar as contas e apontar crime de responsabilidade. Isso abriria a porteira para um pedido de abertura de processo de impeachment de Dilma. Na prática, Eduardo Cunha quer usar essa condenação para enfraquecer ainda mais a presidente, mas não para abrir um processo de impeachment. Essa estratégia mudará somente se Dilma se afundar de modo irreversível. Se ela for impedida, Temer assumiria em seu lugar, algo que ele já disse com veemência que não gostaria de ver acontecer, mas vai que...
O outro risco para Dilma está no Tribunal Superior Eleitoral. O ministro João Otávio Noronha requisitou acesso à delação premiada do empreiteiro Ricardo Pessoa, da UTC, presidente do "clube", o cartel de empresas que desviou bilhões da Petrobras e distribuiu propina ao PT, PP e PMDB. Pessoa diz ter pago R$ 7,5 milhões à campanha de Dilma em 2014 para não perder contratos na estatal. Pessôa diz que acertou tudo com Edinho Silva, então tesoureiro da campanha de Dilma e atual ministro da Secretaria de Comunicação Social. Segundo ele, Edinho insinuou que a UTC perderia contratos se não ajudasse o PT. A questão ainda é prematura, mas o que Pessôa diz pode significar que a campanha de Dilma foi abastecida com dinheiro roubado de uma estatal, o que poderia levar, em última instância, à cassação de sua chapa. Dilma e Temer perderiam seus cargos. O presidente da Câmara, Eduardo Cunha, assumiria o governo por 90 dias e convocaria novas eleições. Em vez de assar uma presidente fraca enquanto se preparam para 2018, Eduardo Cunha, Renan e Temer se tonariam sócios subalternos de, talvez, um governo Aécio Neves.
A partir daí fica fácil entender por que o PMDB pode conversar com a oposição, se alinhar a ela em votações no Congresso, mas não vai se movimentar pela saída de Dilma. O único consenso que há nos cenários apresentados é que o PT e Dilma perdem. Fora isso, nenhum dos caminhos une todos os interessados, sejam da oposição, sejam do PMDB. A possibilidade de o TSE impugnar a chapa Dilma-Temer só agrada ao senador Aécio Neves, presidente do PSDB. No clima atual e com os 51 milhões de votos que teve no ano passado, Aécio seria um favorito em uma eventual nova eleição. É a opção que praticamente todo o PMDB rechaça, pois Temer seria varrido junto com Dilma. Nem o PSDB inteiro a apoia. O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, tem pretensões de ser candidato em 2018. "O Aécio está vendo a chance de ganhar a eleição que perdeu", diz um tucano.
A alternativa do impeachment de Dilma por causa da condenação das pedaladas no TCU tem mais simpatia no PMDB porque Temer se tornaria o presidente da República até 2018. Mas nem o partido todo gosta disso. O presidente da Câmara, Eduardo Cunha, por exemplo, prefere outra alternativa. Cunha é um adepto do parlamentarismo, sistema pelo qual o governo é exercido por um primeiro-ministro, escolhido dentro do Congresso. Recentemente, Cunha encarregou seis parlamentares de sua confiança da tarefa de construir essa possibilidade. Eles resgataram uma antiga proposta de Emenda Constitucional feita pelo deputado Bonifácio Andrada, começaram a consultar juristas e até ex-parlamentares experientes para redigir uma proposta do tipo. Uma das alternativas examinadas é incluir a possibilidade de um senador exercer o cargo de primeiro-ministro, algo inusual, apenas para angariar o apoio do presidente do Senado, Renan Calheiros. "Parlamentarismo para quê? Para dar cargo de primeiro-ministro ao Eduardo Cunha?", diz um integrante da cúpula do PMDB.
A ideia do parlamentarismo funciona mais atualmente como um elemento de dissuasão de Cunha, uma maneira de ele mostrar que, apesar de ferido pelas investigações da Operação Lava Jato, precisa ser levado em conta. Ele e Renan devem ser denunciados pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, até setembro. Perderão prestígio e poder – muito ou pouco, depende deles e das lambanças de Dilma. Ambos sabem disso. É mais um elemento que equilibra o jogo político em Brasília, esvaziando as chances de impeachment.
O dinheiro já sentiu o cheiro desse deslocamento do poder para o PMDB, sabe que é dali que emanam as respostas para o futuro. Na semana passada, o presidente da Fiesp, Paulo Skaf, procurou a cúpula do partido no Senado para organizar um almoço com cerca de 150 empresários. Um grupo de 20 empresários reuniu-se com lideranças do partido no Senado, na sala do senador Eunício Oliveira. Outros procuram o presidente da Casa, Renan Calheiros. Os demais senadores também perceberam. O tucano José Serra conversa bastante com o PMDB. É cortejado especialmente por Renan Calheiros. Ex-petista e opositora neófita e ferrenha, a senadora Marta Suplicy é outra que colou no PMDB em busca dos rumos do país.
A movimentação mais "radical" que o PMDB fará nos próximos meses já está coreografada. Temer deixará, aos poucos, o varejo da coordenação política, Até agora, a missão desgastou sua imagem devido às sabotagens do ministro-chefe da Casa Civil, Aloizio Mercadante. Cautelosamente, Temer se cercou de vários anteparos. Além do ministro Eliseu Padilha, repassou a divisão dos cargos ao ex-deputado Rocha Loures e, na semana passada, levou para o Palácio o ex-vice-governador do Distrito Federal Tadeu Filippelli. Eles cuidarão do embate diário de cargos e emendas. Temer ficará livre para cuidar apenas de negociações de níveis mais altos, até mesmo com a oposição.
Na semana passada, políticos em todos os cantos de Brasília discutiam as possibilidades de Dilma ser retirada do Palácio do Planalto. Alguns, maldosos, brincavam que ela seria capaz de amarrar-se à mesa do gabinete. Lembravam o que aconteceu com Collor. Faziam o que nunca se deve fazer: buscar analogias com o passado para tentar projetar o futuro. Esquecem-se das lições do matemático libanês Nassim Nicholas Taleb, que cunhou a teoria do cisne negro. Taleb é enfático ao mostrar que buscar traços em comum entre passado e o presente para definir o futuro não é uma boa ideia, pois a história é feita de imprevistos, os cisnes negros. Qualquer movimento pela retirada de Dilma que não seja pela inércia do tempo e da Constituição anima conversas de políticos, mas guarda incontáveis imprevistos, além de uma arriscada e traumática travessia em um momento particularmente perigoso. Grandes investidores internacionais se mostram mais apreensivos com o cenário político do que o econômico - para eles, o andamento da crise na parte financeira já era esperado; o esfacelamento do governo e das relações políticas, não. O Brasil flerta com o segundo impeachment em 20 anos em um momento em que o cenário internacional também é ruim. A unidade política da União Européia e a recuperação econômica do bloco são ameaçadas pela crise da Grécia. A derrocada das Bolsas de Valores mostra um soluço temerário do capitalismo da China, sempre um incômodo para o Brasil. Em um cenário assim, alguns arriscam, um presidente a vir após Dilma não teria trégua nenhuma. Como disse Temer ao amigo, difícil alguém se sentir "confortável" numa situação assim.
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