Daniel Pereira e Robson Bonin – Revista Veja
Quando era presidente, Fernando Henrique Cardoso cultivou a fama de
exterminador de crises, que, dizia-se, sempre saíam do Palácio do Planalto menores
do que entravam. De Dilma Rousseff, fala-se exatamente o oposto. Centralizadora
e avessa a negociações, a presidente semeou um quadro de recessão econômica e
de derrotas no Congresso. Rejeitada por nove em cada dez brasileiros, ela
também perde apoiadores no grupo de políticos e empresários que ditam o rumo do
país. Até o ex-presidente Lula, seu mentor, lhe faz críticas cada vez mais
contundentes. Com apenas seis meses de segundo mandato, Dilma está só, não
exerce o poder na plenitude nem consegue mobilizar a tropa governista. De
quebra, é acossada por investigações que podem destituí-la do cargo — entre
elas, a Operação Lava-Jato, que esquadrinha o maior esquema de corrupção da
história do país. Diante de uma conjuntura assim, a maioria dos governantes
optaria por mais diálogo, sensatez e pés no chão. Dilma não. Ela reage à crise
com argumentações destrambelhadas, otimismo exagerado e erros primários de
avaliação. Pior: como de costume, alimenta a agenda negativa.
Na semana passada, a presidente, contrariando o mais elementar dos manuais
de política, fisgou a isca dos adversários e abordou novamente em público a
possibilidade de enfrentar um processo de impeachment. "Eu não vou cair,
isso é moleza", desafiou em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, na
qual chamou setores da oposição de golpistas. A resposta foi imediata:
"Tudo o que contraria o PT é golpe", ironizou o senador Aécio Neves
(PSDB). Nos regimes democráticos, a destituição de um mandatário depende de
provas, do aval das instituições e do apoio da opinião pública. Em sua defesa,
Dilma alega que jamais se locupletou de dinheiro sujo. Falta a essa versão o
respaldo inequívoco dos fatos. VEJA teve acesso a mais um testemunho de que
propina cobrada em troca de contratos — desta vez, no setor elétrico, a menina
dos olhos de Dilma — abasteceu os cofres do PT em pleno ano eleitoral. Os
operadores da transação criminosa foram o onipresente João Vaccari Neto, então
tesoureiro do partido, e Valter Luiz Cardeal, diretor da Eletrobras, o
"homem da Dilma" na estatal e um dos poucos quadros da administração
com livre acesso ao gabinete presidencial.
O relato desse novo caso de desvio de verba pública para financiar o projeto
de poder petista consta do acordo de delação premiada firmado entre o
engenheiro Ricardo Pessoa, dono da construtora UTC, e o Ministério Público
Federal. Num de seus depoimentos, Pessoa contou que em setembro do ano passado
o consórcio Una 3 — formado por Andrade Gutierrez, Odebrecht, Camargo Corrêa e
UTC Engenharia — fechou um contrato para tocar parte das obras da Usina de
Angra 3. A assinatura do contrato, estimado em 2,9 bilhões de reais, foi
precedida de uma intensa negociação. A Eletrobras pediu um desconto de 10% no
valor cobrado pelo consórcio, que aceitou um abatimento de 6%. A diferença não
resultou em economia para os cofres públicos. Pelo contrário, aguçou o apetite
dos petistas. Tão logo formalizado o desconto de 6%, Cardeal chamou executivos
do consórcio Una 3 para uma conversa que fugiu aos esperados padrões técnicos
do setor elétrico. Faltava pouco para o primeiro turno da sucessão
presidencial. O "homem da Dilma" foi curto e grosso: as empresas
deveriam doar ao PT a diferença entre o desconto pedido pela Eletrobras e o
desconto aceito por elas. A máquina pública era mais uma vez usada para bancar
o partido em mais um engenhoso ardil para esconder a fraude.
A conversa de Cardeal foi com Walmir Pinheiro, diretor financeiro da
empresa, escalado para tratar dos detalhes da operação. Depois dela, Vaccari
telefonou para o próprio Ricardo Pessoa e cobrou o "pixuleco".
"Quando soube que a UTC havia assinado Angra 3, João Vaccari imediatamente
procurou para questionar a parte que seria destinada ao PT — o que foi feito
pela empresa", relatou o empreiteiro. Aos investigadores, Pessoa fez
questão de ressaltar que, segundo seu executivo, foi Cardeal quem alertou
Vaccari sobre a diferença de 4 pontos porcentuais entre o desconto pedido pela
Eletrobras e o concedido pelas construtoras. Perguntado sobre o que sabia a
respeito de Cardeal, Pessoa afirmou: "É pessoa próxima da senhora
presidenta da República, Dilma Rousseff". Dilma e Cardeal são amigos há
décadas. Nos anos 90, quando ela era secretária de Energia do Rio Grande do
Sul, ele trabalhava como diretor da companhia estadual de energia elétrica.
Nomeada ministra, Dilma escalou Cardeal para atuar no governo federal. Sob as
ordens dela, ele presidiu os conselhos de administração de Furnas e da
Eletronorte. Nessa trajetória, chegou a ser denunciado pelo Ministério Público
por gestão fraudulenta e desvio de recursos. Nada que lhe abalasse o cargo e o
prestígio com a presidente. "Só encontrei com João Vaccari em eventos
partidários. Jamais tratei com esse senhor qualquer assunto relacionado ao
setor elétrico", disse Cardeal.
Ricardo Pessoa também contou que o contrato de Angra 3 rendeu vantagens
financeiras a caciques do PMDB. Os valores foram desembolsados como pagamento à
ajuda deles para derrubar "barreiras burocráticas" no setor elétrico,
que conta com forte presença do partido. Preço da fatura: 3 milhões de reais,
negociados diretamente com os senadores Renan Calheiros (AL), presidente do
Congresso, e Romero Jucá (RR). Em sua delação, o ex-presidente da Camargo
Corrêa Dalton Avancini também detalhou às autoridades o esquema de corrupção em
Angra 3. Avancini afirmou que as empresas do consórcio pagaram propina a
políticos do PMDB e a funcionários da Eletronuclear, como o presidente Othon
Luiz Pinheiro, também citado por Pessoa. Numa reunião na sede da UTC em agosto
de 2014, ficou decidido, segundo Avancini, que a propina equivaleria a 1% do
contrato.
Conforme revelado por VEJA, Ricardo Pessoa afirmou aos procuradores que usou
recurso desviado da Petrobras para bancar as despesas de dezoito figuras
coroadas da República.
Foi com a verba roubada da estatal que a UTC transferiu dinheiro às
campanhas de Lula em 2006 e Dilma em 2010. No caso da reeleição da presidente,
a doação foi motivada por uma chantagem feita, de "maneira bastante
elegante", pelo tesoureiro da campanha presidencial e atual ministro de
Comunicação Social, Edinho Silva. "Você tem obra no governo e na
Petrobras.
O senhor quer continuar tendo?", disse-lhe Edinho. O achaque deu certo.
Documentos entregues por Pessoa ao Ministério Público mostram que a empreiteira
doou 7,5 milhões de reais à campanha de Dilma em 2014. Além de municiarem as
investigações criminais em curso, os fatos narrados pelo dono da UTC podem ter
peso decisivo na Justiça Eleitoral. Pessoa deporá no processo em curso no
Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que analisa denúncia de abuso de poder
político e econômico por Dilma na campanha de 2014. Acolhida a representação, a
presidente e o vice, Michel Temer (PMDB), terão o mandato cassado e uma nova
eleição será convocada.
Antes da revelação do teor da delação do dono da UTC, governistas e
oposicionistas faziam a mesma projeção: três dos sete ministros do TSE votariam
a favor de Dilma, e dois contrariamente a ela. O desfecho, então, dependeria
dos votos de Dias Toffoli e Luiz Fux. Ambos foram nomeados ministros em governos
petistas, mas Toffoli se diz escanteado pela presidente, e Fux carrega no
currículo votos implacáveis pela condenação da antiga cúpula do PT no processo
do mensalão. A previsão é que o TSE decida o caso em setembro. A presidente
também é acossada em outra frente de batalha. Em agosto, o Tribunal de Contas
da União (TCU) se manifestará sobre a prestação de contas do governo de 2014. A
tendência é uma decisão unânime pela rejeição das contas. A sentença será
encaminhada ao Congresso, que pode ratificar ou não o entendimento do TCU. Caso
o Congresso também as rejeite, estará pavimentado o caminho para a apresentação
de um pedido de impeachment de Dilma por crime de responsabilidade. Numa
conversa reservada na semana passada, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha
(PMDB-RJ), reafirmou que rejeitará tal pedido, porque, para ele, Dilma só pode
ser cassada por um crime cometido na atual gestão.
Desafeto da petista, Cunha observou, no entanto, que o plenário pode
recorrer de sua decisão e determinar a abertura do processo de impeachment. O
futuro da presidente passaria, então, a depender da situação da economia, dos
humores da base governista e da proporção das manifestações populares marcadas
para o dia 16 de agosto. Se houver impeachment, o vice Michel Temer assumirá.
Essa solução divide o PSDB. O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, e o
senador José Serra veem com bons olhos a possibilidade de Temer se tornar
presidente. Serra tem mantido conversas frequentes com o vice. Tucanos dizem
que o senador não descarta ser ministro do peemedebista e até cogita lutar para
ser o candidato do PMDB ao Planalto em 2018. Com planos de concorrer à
Presidência, Alckmin também prefere que, caso Dilma caia, seja pela via do TCU,
já que isso afastaria a possibilidade de Aécio, seu principal rival no ninho
tucano, sair vitorioso numa eleição de emergência convocada pela Justiça
Eleitoral. "Não tenho de ser protagonista de nenhuma ação de impeachment.
O processo de abuso do poder econômico na campanha tem de ser julgado pelo
tribunal, dentro das regras constitucionais", disse Aécio a VEJA.
Ao contrário do que ocorreu no mensalão, o governo e o PT não contam com um
estrategista para organizar a linha de defesa e um plano de superação da crise.
A resistência é feita aos trancos e barrancos. Durante meses, Lula pediu a
Dilma que se engajasse para deter a Operação Lava-Jato.
Ela, no entanto, manteve o discurso de que nada tinha a ver com o petrolão.
Foi acusada pelos companheiros de autismo. Com o agravamento da crise e a
possibilidade de ser preso, Lula saiu a campo — não como o líder acostumado a
mobilizar exércitos, mas no papel de um político que enfrenta queda de
popularidade e está à procura de ajuda. Numa conversa com caciques do PMDB,
Lula defendeu a tese de que os presidentes dos três poderes deveriam atuar em
conjunto para conter uma campanha de "criminalização
político-partidária" que, segundo ele, poderia abrir espaço para um
aventureiro conquistar o poder em 2018. O petista citou o caso de Silvio
Berlusconi na Itália e, em tom professoral, continuou com uma discurseira
institucional até ser interrompido pelo senador José Sarney (PMDB-AP).
Com sessenta anos de vida pública e experiência e lucidez de sobra para
traduzir os interlocutores, Sarney disse que o problema verdadeiro era a
Lava-Jato, que ameaçava o topo da República, de Lula a Dilma, passando pelos
presidentes da Câmara e do Senado. E que só o petista, como o maior líder
político do país, poderia deter a enxurrada. Como? Pressionando os ministros
dos tribunais superiores a anular a investigação do petrolão com base nas
supostas irregularidades e arbitrariedades cometidas pelo juiz Sergio Moro.
"O Moro sequestrou a Constituição e o país. O Supremo Tribunal Federal não
pode se apequenar", declarou Sarney. Lula concordou com o peemedebista.
Era o que ele queria mas não tinha coragem de dizer. O petista já viu os
companheiros Delúbio Soares, José Dirceu e Vaccari ser presos. A atuação de seu
tesoureiro de campanha à reeleição, José de Filippi, está devidamente relatada
na delação de Ricardo Pessoa. Há tanta apreensão no PT que deputados e
senadores do partido defendem a ideia de que Lula seja nomeado ministro para
ter direito a foro privilegiado e fugir das garras de Moro.
A conversa com os caciques peemedebistas organizou minimamente a tropa
petista. Lula ficou de procurar Ricardo Lewandowski, presidente do Supremo
Tribunal Federal (STF), um amigo de longa data que mostrou solidariedade no
processo do mensalão e, agora, pode ser decisivo para eventual anulação da
Lava-Jato. Na quinta-feira passada, a presidente Dilma recebeu o mesmo
Lewandowski para uma conversa em Portugal. Houve uma tentativa de manter o
encontro em sigilo. Como ele foi descoberto, restou ao governo alegar que Dilma
e Lewandowski trataram do reajuste salarial dos servidores do Judiciário. O PT
não respeita a inteligência alheia. Já a presidente, dizem seus próprios
aliados, parece viver num universo paralelo. Não sem razão. Na semana passada,
Dilma disse que pretende convocar o Conselho da República — formado pela
presidente, pelo vice, pelos comandantes da Câmara e do Senado e pelo ministro
da Justiça — para defender as instituições brasileiras das ameaças de
instabilidade. Só pode ser piada — ou alheamento. Como no caso do mensalão, a
investigação do petrolão fortalece as instituições. Riscos a elas, se existem,
decorrem dessas tentativas de conchavos nada republicanos.
Com reportagem de Adriano Ceolin e Mariana Barros
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