- O Estado de S.Paulo
Lesões oportunistas são obra de ideologias diversas que enfraquecem uma nação
Para saber como as democracias morrem há legistas mais capazes na autópsia. Mas para diagnosticar como adoecem melhor observar o mal-estar dos fatos polêmicos à luz da ousadia pessoal dos influentes que os cometem e da letargia cívica com que os influenciados reagem a eles. Lesões oportunistas são obra de ideologias diversas que enfraquecem uma nação e comprometem sua saúde democrática.
Neste artigo olho um período cheio de egolatrias em que ficamos à mercê da marca do outro. Assim como a gula, apetite sem limite de quem se sente situado no topo da cadeia alimentar, a voracidade é mecanismo próprio do mau instinto de quem não tem predador natural.
Se todos têm suas próprias razões no que fazem e estão tão mergulhados de interesse nelas, não se trata de liberdade de pensamento e é difícil imaginar reflexão de boa-fé. Existem ficções e existem fatos concretos. Embora pouco praticada entre nós, a psico-história da política costuma ser mais hábil para entender os venenos sutis que alimentam a ambição dos que são notícia.
Anda, evidente, muito mal conduzida nossa democracia. Mas isso não significa que tenha morrido. Lembra mais a lenda brasileira de que ninguém presta e não vai dar em nada. Lenda que impulsiona o caráter arbitrário do tipo que manda ver. Um costume primitivo, institucional, cuja dimensão ainda não compreendemos inteiramente. É onde estacionou a curva da civilização brasileira e dali jamais passou. Ali onde o mundo em que são cometidos crimes e as aberrações legais ameaça ficar parecido com o mundo onde deveria ser possível corrigir suas consequências.
Assim se pode inferir um pouco da hilária história do escritório especialista em convencimento, dissuasão e oferecimento de conduta sobre dívida, confusões financeiras e contábeis de países e instituições enroladas, descuidadas da responsabilidade pública e coletiva. Era uma auditoria nacional ou uma exigência extraterritorial? Bem, depende de onde importa a justiça para o caso. Se é preciso limpar a barra nos EUA, o ônus da prova cabe ao acusador. Eu escolheria Londres, onde o ônus da prova cabe ao acusado e se evita a promiscuidade do advogado com o cliente. Todos sabem que em negócio corrosivo a ferrugem parece não corromper o ferro. E os zelosos guardiões do fundo que ampara o trabalhador acabaram pagando, de fato, um milionário honorário de sucumbência.
Bem, sobre a turma do entretenimento fácil tivemos um cardápio variado. Permanece a sina de que o lucro velhaco e a guerra pelo mercado brasileiro fazem da internet uma trincheira, com essa mania de viciar idiotas em aplicativos, vídeos e competições arranjadas. Manifestos em forma de ficção política e humorística ofereceram insultos em vertigem à democracia e ao espírito do País. Do mesmo naipe que o empréstimo bancário expatriado saiu pela porta dos fundos. Está fácil açoitar o nazareno, pois romanos sempre gostaram de rir de judeus. Tudo converge para dois martírios: o do sagrado pela piada grossa que quer ser humor e o da opinião pessoal que quer ser história.
E assim, glória do inadmissível, chegamos à encruzilhada de a liberdade de imprensa receber goela abaixo hacker como fonte. Dá vontade de rir recorrer a jornais estrangeiros para ampliar o ilícito! Outra vez o estilo manda ver dando a linha que já destruiu ideais na esquerda por achar que causa justa limpa conduta suja.
Em seguida, em movimento digestivo aquoso e rápido, próprio do apetite de mandar, relembro a amarga definição de um ex-presidente do Supremo, quando saiu a decisão do presidente interino: o STF é uma porta que só abre por dentro. O elo mais alto da cadeia alimentar da Justiça joga no lixo decisão do Congresso exigindo dos representantes do povo o princípio da obediência devida, pois não há mais garantia em juiz. A desordem de princípios e a falta de domínio de si de magistrados são adoecimentos.
Não me parecem dilemas morais ou políticos. Estamos afundados é na era em que os que comem sentem fome. E até Regina, admirada por ser sempre a mesma, é atacada por tutores ideológicos que a querem outra e aproveitam para descarregar sua alma empanturrada de ênfases sobre ela. Bem, a volta ao mundo em 12 dias pelo interino voador, usando um avião da FAB como uber, resume tudo, pois lembra assustadoramente o fastio de viver do filme A Comilança.
Olhando bem, a marca atual é a de que cada um só faz servir a si próprio. Nossa época está melhor se ajustando a um tipo de racismo não estudado pela antropologia, uma etnia específica do cara de pau. O pode-tudo da ficção vivida como realidade é geral. Um jogo de fascismos, essa certa visão de si mesmo que provoca disputa e cria rivais. Mas como o campo gravitacional da luta mudou de lado na última eleição, a autoanálise dos derrotados é mais indicada do que o desencanto ou manipulações.
O poder arbitrário continua um obscurantismo que cumpre a função de agravar ou criar uma fragilidade identitária nas pessoas. Para ganhar adeptos para a fantasia de imperfeição, grosseria, desconfiança e desânimo que adoece a democracia.
* Paulo Delgado é sociólogo.
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