domingo, 14 de junho de 2020

Dorrit Harazim - O tempo encurta

- O Globo

No Brasil de Bolsonaro, dia sim dia não algum militar da ativa, de pijama ou de ministério nega riscos de qualquer tipo de golpe

A jornalista americana de origem russa Masha Gessen usa de impiedade cirúrgica quando descreve tiranos. Basta ler “O homem sem rosto”, seu livro-reportagem sobre Vladimir Putin, o líder russo de alma soviética ou líder soviético de alma russa, tanto faz — para reconhecer em Gessen amplo conhecimento em viciados do poder. A mais recente investida da escritora tem por título “Surviving Autocracy” (sobrevivendo à autocracia) e chega em boa hora. Embora a obra centre foco no esgarçamento do tecido democrático em curso com Donald Trump, o tema adquire urgência diante da proliferação de candidatos a autocrata mundo afora.

O presidente americano ainda estaria na primeira etapa de uma escalada ao poder antidemocrático, uma vez que as instituições, a oposição e a imprensa livre do país continuam de pé. Segundo uma sequência elaborada pelo sociólogo e ex-ministro da Educação húngaro Bálint Magyar, Trump vive a fase da “tentativa autocrata”. Ela antecede às duas seguintes do ciclo autoritário estudado por Magyar: a “ruptura autocrática” e a “consolidação da autocracia”.

Até recentemente Trump demonstrou ser um aspirante bastante sólido à supremacia do poder pelo poder, com eleitorado personalista fidelíssimo e um Partido Republicano curvado em servilidade. Mas tudo mudou com a devastação provocada pela Covid-19, que já ultrapassou a marca de dois milhões de contaminados e 110 mil óbitos nos EUA. A razia do vírus somou-se ao destemido despertar antirracista nas ruas do país e, de repente, a cinco meses da eleição presidencial, Donald Trump tem pressa.

Seu índice de popularidade voltou a despencar fora da bolha que lhe é fiel, e o adversário democrata Joe Biden, apesar de física e mentalmente fraquejante, está oito pontos percentuais à frente. Com ou sem pandemia, é imperioso para Trump voltar aos comícios em arenas fechadas, de forma a dominar o noticiário e turbinar o eleitorado. A adição de um pré-requisito para participar de seus comícios merece mais do que um rodapé na história: o apoiador precisa confirmar, on-line, ter ciência do risco de exposição ao coronavírus, e garantir, voluntariamente, que não vai acionar Donald J. Trump na Justiça no futuro. Temos aí um díptico perfeito da peste de 2020 e da mente do 45º presidente dos Estados Unidos. Como é que ninguém do Palácio do Planalto ou de seus porões não pensou em algo semelhante para Jair Bolsonaro?

Faz parte do perfil de um aspirante a autocrata ceder o poder em caso de derrota nas urnas, mesmo que esperneando e afogado em teorias conspiratórias. Mas e se ele quiser pular etapas e partir para a “ruptura”? Dias atrás, correu mundo um discurso em vídeo do general Mark Milley, chefe do Estado-Maior Conjunto dos Estados Unidos. Dirigida a cadetes da Universidade Nacional de Defesa, a fala visou a ouvidos civis e militares, republicanos e democratas.

A mais graduada autoridade militar americana pedia desculpas à nação. Milley servira de figurante a uma desastrosa encenação de Trump nas ruas, que resultara em violenta repressão a manifestantes pacíficos. “Minha presença naquele momento e naquele ambiente criou uma percepção de envolvimento dos militares na política interna... Nós que usamos as insígnias da nossa nação, que viemos do povo, devemos sustentar o princípio de Forças Armadas apolíticas...”, disse o general. Em privado, ele também alegou que fora convocado de surpresa pelo presidente e o acompanhou sem saber do que se tratava — o que por si só já seria péssimo, vindo de um chefe militar da maior potência mundial. Mais grave, contudo, é o fato em si: nos EUA de Trump foi necessário esclarecer que as Forças Armadas têm raízes firmes na base republicana da nação. Coisa rara, senão inédita. E inquietante.

Lá não é como no Brasil de Bolsonaro, onde dia sim dia não algum militar da ativa, de pijama, ou de ministério nega riscos de qualquer tipo de golpe —seja presidencial ou de quepe.

Por ora, a nossa aberração nacional tem tintas próprias. Na Praia de Copacabana a areia amanhecera com cem cruzes de madeira sobre covas rasas, simbolizando as mais de 40 mil vidas brasileiras que o coronavírus já levou e enterrou às pressas. Lá pelas tantas um bípede grisalho de peito estufado e passada firme sai do calçadão e adentra a instalação montada pela ONG Rio de Paz. Ele não usa máscara, prefere óculos de sol. Avança pela areia sem tirar o tênis e passa a arrancar as cruzes uma a uma, em movimento cadenciado, quase militar. Hesita só uma vez, indeciso diante da bandeira nacional que enfeitava uma das cruzes. Sacrilégio derrubar a bandeira pátria no chão. Tinha plateia, silenciosa.

Até que outro brasileiro irrompe na cena. Márcio Antonio perdera o filho de 25 anos para a Covid sem poder lhe dar um enterro decente. Caminhava pelo calçadão com a mulher quando percebeu o destruidor de cruzes em ação. De chinelo nos pés e camisa no pescoço, também invadiu a areia. Em cadência igualmente obsessiva foi refincando as cruzes tombadas uma a uma, com paixão. Foi xingado com estridências. Ouviu “Vai pra Venezuela!”, como se a Venezuela já não fosse aqui. De outro espectador recebeu o conselho de baixar o tom da raiva.

Se ninguém se mexer, os aspirantes daqui vencem.

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