Só a imunidade coletiva — e, eventualmente, a tão aguardada vacinação em massa — é capaz de derrotar o vírus
A estratégia do lockdown foi exibida como arma infalível contra o coronavírus. Seus arautos rimam lockdown com ciência, escrevendo esta última em maiúsculas, o que remete, paradoxalmente, ao pensamento religioso. As experiências de três países sugerem que, na corrida de fundo da pandemia, os contágios só encontram limites na imunidade coletiva.
A Argentina praticou o lockdown em toda a sua extensão. Foram cinco meses de “quarenterna”, termo jocoso usado no país para se referir à “quarentena eterna” aplicada rigidamente pelo governo de Alberto Fernández. O país vizinho realizou o sonho de não poucos epidemiologistas (e jornalistas) brasileiros, ganhando cataratas de elogios emocionados. No fim, em agosto, flexibilizou —pois nada na vida é eterno, exceto a morte. Daí, o vírus fez a festa.
Na primeira quinzena de setembro, a média diária de óbitos por coronavírus superou a barreira de 200. Como a Argentina tem um quinto da população brasileira, a taxa de letalidade equiparou-se à do nosso longo patamar máximo. O que fazer, se um novo lockdown tornou-se social e economicamente impossível?
A África do Sul também recorreu ao lockdown, mas por tempo menor, e deflagrou a flexibilização no pico dos contágios. Há uma semana, finalmente começou a registrar queda significativa de infecções. Na hora da desaceleração da epidemia, cerca de um quinto da população já havia tido contato com o vírus. Aparentemente, o país chegou ao umbral da imunidade coletiva, uma faixa ainda um tanto misteriosa que gira em torno de 20% a 40% da população total.
A fim de minimizar os impactos indiretos da epidemia na vida social, a Suécia nunca utilizou quarentenas. Foi, por isso, errônea e perversamente acusada de permitir a difusão de contágios para alcançar a imunidade coletiva. De fato, o governo sueco adotou diversas medidas voluntárias de distanciamento social, destinadas a proteger seu sistema de saúde. Formulada para o horizonte de longo prazo, a estratégia funcionou: hoje o país exibe taxas de novos casos inferiores às da Espanha, da França e do Reino Unido, que implementaram lockdowns.
As taxas acumuladas de mortalidade na Suécia situam-se em patamar semelhante ao dos outros países europeus fortemente atingidos no estágio inicial da pandemia, quando o vírus circulava oculto. A diferença é que a população sueca foi mais extensamente exposta à doença e, agora, percorre um estágio mais avançado de imunidade coletiva. Graças a isso, o espectro de novos lockdowns, que atormenta espanhóis, franceses e britânicos, não assombra os suecos.
Não faz sentido falar num “modelo sueco”. No país escandinavo, uma elevada parcela da população reside em habitações individuais ou de casal, quase inexistem espaços urbanos superpovoados, a pobreza é residual, e há forte confiança nas orientações sanitárias oficiais. África do Sul, Argentina, Brasil ou mesmo Espanha não poderiam replicar sua estratégia. Contudo, no plano epidemiológico, as experiências sueca, argentina e sul-africana evidenciam o equívoco dos arautos de “quarenternas”.
Lockdowns tornam-se inevitáveis quando uma onda devastadora de infecções e hospitalizações ameaça provocar o colapso dos sistemas de saúde. Mas, ao contrário do que assegurava o fundamentalismo epidemiológico, não servem para estancar a epidemia. Só a imunidade coletiva — via extensão de contágios e, eventualmente, a tão aguardada vacinação em massa — é capaz de derrotar o vírus.
No caso dos lockdowns, a fé tomou o lugar da ciência, fantasiando-se com seus trajes. Atrás do fenômeno, espreita a ideologia. Num ambiente de forte polarização política, a bandeira das “quarenternas” foi a resposta dos bem pensantes ao negacionismo místico da extrema-direita, que enxerga no “vírus chinês” uma conspiração de “globalistas” e comunistas.
Há, porém, uma diferença decisiva entre uns e outros: os bem pensantes juram imorredoura lealdade à ciência. Se esse juramento tem algum valor, já passa da hora de revisarem sua fé irracional em lockdowns. A ciência, afinal, curva-se sempre às lições da experiência.
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