segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Luiz Carlos Mendonça de Barros* - Choque liberal: um sonho?

- Valor Econômico 

 O ministro se dispôs a abandonar a natureza radical de seu programa e adaptá-lo ao que é possível realizar

O analista que acompanhou o início do mandato do presidente Bolsonaro sempre teve dúvidas sobre a viabilidade política do choque liberal na economia prometido pelo ministro Paulo Guedes. Afinal, o histórico parlamentar do novo Presidente da República - inclusive sua origem militar - apontava em outra direção. Mas, a composição da equipe econômica feita com total autonomia parecia contradizer os mais pessimistas em relação a esta questão.

Eu me incluía neste grupo, principalmente por experiências vividas na minha carreira profissional por mais de cinquenta anos. Afinal, foi no ambiente de um verdadeiro choque liberal que iniciei a caminhada no mercado financeiro brasileiro em 1967. Mais ainda, meu primeiro patrão foi Roberto Campos, avô do atual presidente do Banco Central e considerado até hoje como uma referência de modelo liberal de gestão da economia.

Recém-formado pela Escola Politécnica da USP e novato em questões econômicas fui educado, nos primeiros anos de minha carreira, pelo professor Roberto Campos, como era chamado por nós funcionários do Investbanco. À época já era possível sentir em algumas de suas palavras - amargas - um forte ressentimento em relação às mudanças que ocorriam no modelo econômico criado por ele no mandato tampão do general Castelo Branco. Sob o comando de outra geração de presidentes militares e nas mãos de um economista de outra escola de pensamento - Delfim Netto - o choque liberal sonhado inicialmente se transformava, segundo ele, em algo pastoso e sem forma.

O general Costa e Silva - novo Presidente da República - e posteriormente seu sucessor Garrastazu Médici, vinham de outro grupo de oficiais do exército, formados fora da Escola Superior de Guerra - que se chamava então de Sorbonne - e à qual pertencia Castelo Branco. Formação profissional diversa, marcada pelas experiências de comando de tropa, mas principalmente com valores econômicos que se antagonizavam com os de Roberto Campos.

Ao longo de meus quatro anos no Investbanco, nos momentos em que tive a felicidade de ouvir o professor Campos comentar sobre economia e política, pude acompanhar de perto sua frustração com a desmontagem do sonho liberal construído com competência entre 1965 e 1967. A economia brasileira respondia com vigor às reformas realizadas e crescia a taxas de quase 10% ao ano, mas agora sob o comando inteligente - mas pragmático - do novo czar da economia, Delfim Neto.

Em 1973, na transição para um novo general presidente, a economia brasileira estava exausta e com problemas graves associados ao fim de um ciclo econômico que tinha se expandido acima de seu potencial. Sob o peso de um choque externo, representado pelo aumento brutal dos preços do petróleo, a inflação saía de controle e nossas contas externas estavam próximas do colapso.

Nesta transição para a presidência do general Geisel, um outro grande nome dos economistas liberais do Brasil - Mario Henrique Simonsen - foi chamado para comandar a economia com a missão de colocá-la novamente nos trilhos da estabilidade macroeconômica. Mas Geisel não era Castelo Branco e Simonsen não chegava perto de Roberto Campos como estadista. Colocado diante de um plano econômico ortodoxo de ajustes nos desequilíbrios cíclicos que vivíamos, Geisel negou-se a aceitar uma recessão como caminho a ser trilhado. Conta a história que teria dito a seu Ministro da Fazenda: “ Por que no meu mandato? “
 
Simonsen cometeu então um erro gravíssimo ao aceitar as limitações estabelecidas por Geisel e o Brasil mergulhou em quase dez anos de crise inflacionária e que levaria ao fim do regime militar em 1984 com a eleição de Tancredo Neves para a Presidência da República.

Mas Tancredo Neves, político conservador e cauteloso, escolheu para assumir o Ministério da Fazenda seu sobrinho Francisco Dornelles. Dornelles tinha uma formação econômica liberal e muito ligado ao pensamento da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, de onde também tinha origem Mario Henrique Simonsen. E em uma destas armadilhas que a história prega a todos nós, a cartilha de Roberto Campos e Bulhões voltava a ser o norte da política econômica no governo civil de Tancredo Neves. 

Mas a morte do presidente eleito e sua substituição por José Sarney criaram uma armadilha fatal para o segundo choque liberal da nossa história republicana. O velho político do Maranhão, guindado por acaso à presidência da República, seria a última pessoa a bancar o torniquete fiscal e monetário criado por Dornelles e sua turma de jovens economistas, todos com a faca entre os dentes para resgatar o nome de Mario Henrique Simonsen.

Uma pequena e interessante nota histórica é que Paulo Guedes foi convidado a fazer parte desta equipe, mas desistiu para iniciar um caminho solo no mercado financeiro.

Este novo choque liberal na economia durou apenas seis meses e abriu o caminho para o nascimento de outra escola de pensamento econômico, sem o radicalismo da anterior, e que se consolidaria como hegemônica por mais de 8 anos com o sucesso do Plano Real e a eleição de Fernando Henrique Cardoso. 

 Vivemos agora um ajuste entre o choque liberal radical, prometido por Paulo Guedes e sua equipe, e a dura e complexa realidade do funcionamento das instituições políticas de nosso país. Parece, visto de hoje, que o ministro entendeu a natureza deste conflito e se dispôs a abandonar a natureza radical de seu programa e adaptá-lo ao que é possível realizar.

Aliás, opção que várias gerações de economistas brasileiros foram obrigadas a fazer em seu tempo de comando da economia para deixar um legado positivo na busca de uma economia mais eficiente em nosso país. Como aconteceu entre 1964 e os dias de hoje. 

 *Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações.

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