- O Globo
Em sua
bolha, o indivíduo tem a sensação de tudo entender pelas teorias conspiratórias
Acabo de assistir ao
documentário sobre as redes “The Social Dilemma”. É assustador mesmo para mim,
que tenho tratado do tema, sobretudo pelo ângulo das fake news e teorias
conspiratórias que impulsionam o tecnopopulismo de direita.
Uma das razões para
ampliar minha abordagem do tema é contar com depoimentos de insiders, pessoas
de dentro do universo tecnológico que trabalharam e ajudaram a construir
plataformas como Twitter, Facebook, Instagram e YouTube.
A maior parte da crítica
disponível até então era de observadores de fora desse universo. Outra
limitação de meu enfoque era observar apenas as consequências negativas das
redes sociais no universo político, gerando uma atmosfera de ódio e mentiras.
Ao ver o documentário,
fica claro para mim que as consequências políticas foram apenas um subproduto
diante da tarefa central: usar a insegurança e a ansiedade das pessoas para
torná-las dependentes do uso das redes e, com o acúmulo dos seus dados,
impulsionar vendas.
Isso não chega a ser uma
descoberta. O interessante é ouvir de alguém que encontrou o Facebook nos seus
primórdios e teve como tarefa descobrir uma forma de fazer dinheiro com aquilo.
Quase todos os talentos
contratados no início viam nas redes sociais algumas de suas inegáveis
qualidades: unir famílias, ampliar o conhecimento coletivo, facilitar a
solidariedade.
O caminho para financiar
era a publicidade. Ela seria mais eficaz quanto maior o tempo de permanência do
usuário, e muito mais eficaz também, na medida em que, conhecendo sua
personalidade, às vezes mais profundamente do que ele próprio, fosse possível
ampliar seu consumo.
Essa é a matriz que acabou
produzindo as aberrações político-sociais que vivemos hoje. A radicalização
política é necessária para prender a atenção das pessoas. As fake news são
atraentes diante de uma realidade tediosa.
Isolado em sua bolha, o
indivíduo tem a sensação de tudo compreender pelas teorias conspiratórias. Se
alguém diz que pedófilos se reúnem no porão de uma pizzaria, ele tenta
invadi-la armado de um fuzil, apesar de a pizzaria nem ter porão.
Se alguém acredita que a
Terra é plana, será alimentado com inúmeras interpretações que fortalecem essa
ilusão. Na busca do Google, dependendo da região, o aquecimento global aparece
como uma fraude ou uma tese científica.
O problema central é que,
ao contrário da TV ou do cinema, a inteligência artificial tende a se modificar
num ritmo cada vez mais alucinante. Alguns dos participantes do documentário
preveem que o processo deve acentuar polarizações e produzir guerras civis. Mas
é evidente que algo pode ser feito para atenuar esses imensos efeitos negativos
do avanço tecnológico.
Certamente não é criando
comissão da verdade, como queriam alguns parlamentares brasileiros. Apesar de
assustador, ou por causa disso, o documentário nos estimula a buscar soluções.
Às vezes invejamos a
intimidade das crianças com essas novas linguagens, um mundo fantástico se
desenrolando com o simples toque de seus dedinhos. Mas nossa geração
intermediária talvez possa contribuir com suas lembranças do mundo real. Outro
dia, falando sobre o tema, lembrei-me de que muitos de nós foram influenciados
pela filosofia do Pós-Guerra, o existencialismo. Uma de suas frases lapidares,
de Jean-Paul Sartre, talvez fosse de utilidade para os jovens: o inferno são os
outros.
Assim como é preciso
estimular o estudo de ideias conflitantes, talvez compense retirar do armário o
antigo conceito de autenticidade, que estimula a pessoa ser ela mesma,
independente de likes, dislikes e ofensas grosseiras.
Voltando ao plano
político, uma das questões básicas é achar o caminho para limitar o acúmulo de
informações sobre as pessoas. Um dos entrevistados chegou a falar de impostos
para reduzir o intenso consumo de dados pessoais pelas empresas. Não sei se é
por aí.
Alguém no documentário lembrou que essas gigantes tecnológicas e a indústria das drogas são as únicas que chamam seus clientes de usuários. É um pouco exagerado, mas depois de ver “The Social Dilemma”, creio que todo mundo vai se perguntar até que ponto está viciado nas redes sociais e quais os caminhos da libertação.
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