A
maior derrota do presidente Jair Bolsonaro é no campo das ideias. Ele defendeu
o descuido com a vida, o eleitor premiou quem a defendeu. Ele quis extremismo,
o eleitor, moderação. Ele ofende minorias, e as urnas elevaram a diversidade
das câmaras de vereadores. Ele administra de forma errática, o eleitor quis boa
gestão. Ele ameaça a democracia, o eleitor a defendeu. Sua derrota tem várias
dimensões. A mais importante está ligada à pandemia. O “e daí?” pra vida dos
brasileiros levou uma surra nas urnas.
Saiu
perdedora a ideia de que sem estrutura partidária, com apenas os filhos e a
milícia digital, ele poderia decidir o voto dos brasileiros. O principal recado
do eleitor foi o de que confia na democracia e no sistema eleitoral, alvos
contra os quais dispara constantemente. Ontem, voltou a atacar, logo cedo,
depois de uma confessada noite mal dormida.
É
natural que perdedores apresentem versões para atenuar as dimensões da derrota.
E foi isso que fizeram ontem o presidente e seu vice, Hamilton Mourão. Bolsonaro
disse que ganhou a direita conservadora e que a esquerda perdeu. Mourão disse
que “sem uma estrutura partidária fica difícil”, e que ele “não entrou de
cabeça”.
Há
vários erros nessa reação. Quem implodiu a própria estrutura partidária foi
Bolsonaro. E por quê? Porque ele sempre desprezou os partidos, esteve em 10,
levou o PSL a ter a segunda maior bancada e o maior fundo eleitoral. Esse
capital eleitoral foi destroçado pelo presidente e seus seguidores. Em dois
anos, o PSL virou um nada. Repete o PRN de Collor, de existência curta. Com o
Aliança, ele colheu a maior derrota da história da criação de partidos. A visão
falsa dos fatos é a forma de Bolsonaro negar aos seus seguidores que ele seja
um derrotado, que de fato é. O segundo turno de São Paulo, entre o PSDB e o
PSOL, é apenas o exemplo mais visível disso.
Houve
um aumento da representatividade de negros, mulheres, pessoas trans, grupos que
ele ofende de forma jocosa. Desses grupos, Bolsonaro tira tudo. Internamente,
nega-lhes o apoio de políticas públicas, externamente tira-lhes a voz com uma
diplomacia estreita e alinhada aos países mais preconceituosos e
fundamentalistas. Nesse aspecto, é dupla a sua derrota. Primeiro, os grupos que
quer apagar da política ganharam mais espaço nas câmaras de vereadores.
Segundo, esse aumento de representação amplia a democracia, que ele tem tentado
minar. A democracia se fortalece quando é capaz de ter pessoas de todos os
grupos da sociedade dentro dos espaços de decisão. São mais valiosos ainda
nesse processo os que entendem a importância de combate às velhas
discriminações. Pessoas negras que neguem o fosso racial histórico — visível,
inegável — acabam tendo um efeito bumerangue. A mesma coisa ocorre no caso de
mulheres que defendem a submissão aos homens. Consolidam o que se deve
combater.
O
presidente amanheceu admitindo não estar bem. É compreensível. Mas, mesmo
indormido, permanece incansável no ataque à democracia. Ontem, voltou a dizer
que o sistema brasileiro de apuração de votos, através da urna eletrônica, não
é confiável. “Se nós não tivermos uma forma confiável de apurar as eleições, a
dúvida vai permanecer”, disse ele disseminando mais uma vez a dúvida sobre o
sistema brasileiro. Desacreditar a apuração é o método — aqui e nos Estados
Unidos — de conspirar contra a própria democracia. O que houve foi que o
sistema brasileiro foi atacado mas não foi atingido. Bolsonaro prometeu
apresentar provas de que houve fraude na eleição que ele venceu em 2018. Nunca
as apresentou.
Há muitas contas provando que ele é o derrotado nas eleições. Em São Paulo, o fiasco foi imenso. Na maior cidade do Brasil os dois candidatos confirmaram na primeira fala após o resultado que são contra as suas ideias. Bruno Covas (PSDB) deixou isso claro quando falou em “tolerância, valores democráticos e respeito à diversidade religiosa”. Seu adversário, Guilherme Boulos (PSOL), disse que era uma vitória contra Bolsonaro. Os balanços não deixam dúvidas de quem é o derrotado nesta eleição. Mas o mais importante não é um governo de estado a mais ou a menos, mas a ampla consagração das ideias de moderação, diversidade, boa gestão e proteção da vida ameaçada pela pior pandemia em um século, cuja gravidade ele ignora.
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