A
governança é arte de promover a amizade entre cidadãos, laço essencial do
Estado
Tristes
povos os que suportam mal perigos naturais e rompem os laços de sociedade.
Coletivos bem constituídos no campo civil enfrentam doenças em melhores condições
do que os carentes de elos internos sólidos. Uma via para entender o caso é o
livro de Tucídides sobre a catástrofe militar do Peloponeso.
Espartanos
invadem o solo onde governa Péricles, cuja política, mesmo apoiada pela
Assembleia, enfrenta a desunião social. A pandemia também ameaça o líder.
Deixando o poder, logo ele morre como vítima. A narrativa de Tucídides mostra
como os atenienses reagem à peste. O mal biológico acelera a fragmentação do
regime. No início, “nem os médicos puderam debelar a praga, por ignorância do
que era ela. Eles próprios morreram mais rápido pela proximidade dos enfermos”
(The Peloponnesian War, tradução de
Th. Hobbes, Livro II, 47).
O
termo para designar a ignorância dos médicos e sua morte é agnoia (ausência de saber,
erro). Cidadãos morrem por agir “normalmente” na moléstia. Muitas lições a
passagem traz hoje aos médicos, políticos, militares, empresários,
trabalhadores. Raros aprendem com a pandemia política ou biológica. O “normal”
reside em ignorar o perigo.
“O
aspecto mais terrível da doença é a apatia das pessoas atingidas (...). O
contágio ocorre nos cuidados de uns doentes para com os outros e os mata em
rebanho. É a maior causa da mortandade, pois se os doentes se abstêm por medo
de visitar uns aos outros, todos perecem por falta de cuidados (...). Quem
sobrevive com maior frequência se compadece em face dos enfermos e moribundos,
pois conhecem a doença por experiência própria e confiam na imunidade. O mal
nunca atacaria a mesma pessoa duas vezes com efeitos letais. Eles recebem
elogios de todos e, no entusiasmo alegre daquelas circunstâncias, alimentam a
esperança frívola de que pelo resto da vida não serão atingidos por outras
doenças.”
Quem
vive no campo vem para a cidade e perece espremido. Mortos postos em pilhas,
cada um enterra os seus como pode. Corpos para serem incinerados são lançados
em fogueiras alheias. Não existe a polis,
a sociedade, a vergonha (Aidós),
o respeito. Mesmo as aves carniceiras fogem dos corpos apodrecidos.
Elias
Canetti comenta a passagem de Tucídides para evidenciar o fenômeno das massas
que perdem o sentido da vida social e a visão política (Massa e Poder). Quando regimes
políticos sucumbem à anomia, doenças oportunistas corroem suas bases e ressurge
o estado de natureza. Vemos o interesse de Hobbes pela Guerra do Peloponeso: Tucídides
permite entender o pacto proposto no Leviatã. (cf. Mario Ricciardi, Le retour du Léviathan. Peur, contagion,
politique). Sob Péricles, brilhante estadista, embora tisnado pela
demagogia, Atenas perde forças vitais em razão da inimizade crescente, não
apenas em face dos atacantes externos, mas nas lutas internas. Quando a
epidemia chega, o corpo cívico já está fragmentado, sem defesas.
A
governança é arte de tecer elos entre cidadãos, promover a sua amizade, laço
essencial do Estado. Tal doutrina é posta no diálogo Político de Platão. Se,
pelo contrário, o dirigente divide as pessoas, a tirania surge com o signo da
morte. Segundo Platão, a polis é
ligada internamente pela philia.
“O maior bem para a cidade é o que a une e a torna una”(República, 462 a-b). Tal elo faz
dos múltiplos indivíduos um conjunto poderoso. “Entre amigos tudo é comum” (República 424 a). O Estado
pertence a todos e cada um deve respeitar os concidadãos. No século 20 um
jurista inverte a tese platônica e proclama que a política é arte de gerar
inimigos internos e externos. Carl Schmitt morreu, mas sua doutrina vive em
cabeças ignaras e poderosas. “Não se pode razoavelmente negar: os povos se unem
conforme a oposição amigo/inimigo. Tal oposição é uma realidade atual e virtual
em todo povo que existe politicamente” (Der
Begriff des Politischen, 1927).
A
passagem foi usada, de modo infeliz, por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Regimes
tirânicos criam o inimigo interno, e assim temos o Holocausto e muitos
genocídios. Até o fim da vida Schmitt insiste sobre a inimizade política: “Um
povo só está seguro de sua identidade quando, de modo claro e sem equívoco, ele
tem um inimigo” (Sobre a
Tele-democracia, 1970, in
Machiavel/Clausewitz).
Se
a democracia grega falece com Péricles e ignora os conselhos platônicos, o que
poderíamos dizer ontem dos Estados Unidos dominados por Trump e agora da nossa
pátria, cujo presidente fomenta a divisão, gera inimigos, despreza a ciência
médica e a própria ameaça da pandemia? Os norte-americanos exorcizaram o
pesadelo político que desnorteia seu Estado. Será difícil ali retomar a via da
comunidade, estratégica para garantir a força de um povo.
Aqui,
infelizmente, as portas da UTI democrática se fecham, a moléstia do ódio e da
ignorância corroem os pulmões do País E a liderança política não chega ao
calcanhar de Péricles... Ou de qualquer outro estadista digno do título. Aqui
d’el-rey!
*Professor da Unicamp, é autor de ‘Razões de Estado e outros estados da razão’ (Perspectiva)
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