Correio Braziliense
No mesmo dia em que o ministro da Defesa
mandou carta ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) com a arrogância usual de
pessoas armadas, insinuando desconfiança quanto à transparência do processo
eleitoral, a democracia boliviana condenou sua ex-presidente a 10 anos de
prisão, por ter contestado os resultados eleitorais que reelegeu o presidente
Evo Morales. As pessoas mais velhas lembram que a Bolívia era símbolo da
"democracia de banana": seus presidentes constantemente destituídos e
substituídos por militares ou civis. Houve ano com mais de um presidente no
espaço de poucos meses. Até que a Bolívia fez sua redemocratização e elegeu o
primeiro presidente em 1982. A partir de então, todos os resultados eram
respeitados.
O rigor democrático só ficou sob suspeição quando a eleição de Evo Morales foi contestada devido a uma vantagem mínima sobre seu opositor. Vale lembrar que Morales fez a primeira interferência dentro do marco legal ao induzir a reforma da Constituição que lhe permitiu reeleições sucessivas, cujos resultados apertados levaram ao golpe dado pela presidente do Congresso, sucessora legal, agora condenada a 10 anos de prisão, como golpista.
Enquanto isso, no Brasil, temos um
presidente que, prevendo sua derrota, se prepara, com roteiro pronto meses
antes, para dar um golpe e continuar no poder, mesmo depois de derrotado. Sua
arrogância e estupidez permitem alertar para o que está preparado: levantar
suspeita sobre a apuração com urnas eletrônicas; ter a justificativa pronta
para alegar que houve fraude. A partir daí, pode usar diversos caminhos, um
deles seria mobilizar os congressistas, inclusive os que também foram
derrotados, para reconhecerem fraude e prorrogarem todos os mandatos de
deputados, senadores, governadores, presidente até 2024. Hoje, isso ainda é uma
ficção, fantasia, tanto quanto seria imaginar a tentativa de golpe do Trump.
Não seriam disparados tiros, o Congresso
funcionaria com a maioria do centrão e outras forças, tudo isso garantido pelas
Forças Armadas, cuja tradição se presta a esse tipo de intervenção. Faz parte
da formação de muitos dos nossos militares separar patriotismo de democracia e
não ter pelos civis o respeito de cidadãos do mesmo nível.
Por isso, a lição da Bolívia é tão
importante ao condenar a ex-presidente Jeanine Anès. Também a lição que vem do
Congresso americano, que apura a tentativa de golpe por Trump, em janeiro do
ano passado. Golpe que serve de receituário para Bolsonaro. Com a diferença de
que nossas Forças Armadas não têm a tradição democrática e respeitosa das
instituições e do poder civil que têm as dos Estados Unidos. O presidente, os
comandantes militares e parlamentares civis precisam perceber que desta vez não
haverá anistia para os crimes de desobediência à ordem democrática. Eles
terminarão presos, talvez anos depois do golpe, mas certamente não haverá
esquecimento.
O livro Por que falhamos: O Brasil de 1992
a 2018 coloca a falta de julgamento dos crimes contra a democracia e a
liberdade, em 1964, como uma das causas de o Bolsonaro ter sido eleito por 56
milhões de eleitores. Votos que ele realmente teve, sem fraudes, mas que não
teria se os crimes da ditadura tivessem sido julgados. Os democratas
brasileiros também precisam considerar que o presidente, seus ministros e as
Forças Armadas estão avisando o que vão fazer: denunciar fraude e não
reconhecer a derrota do Bolsonaro.
Por isso, desde já, os democratas devem
agir com a única arma que têm: o apoio da população ao trabalho do TSE com as
respeitadas urnas eletrônicas, apurando a vontade manifestada pelo povo, no
voto. Explicitar esse apoio democrata transformando a eleição em um plebiscito
do tipo feito no Chile, décadas atrás, para acabar com o regime militar de Pinochet.Todas
as forças políticas chilenas, apesar de suas divergências, estiveram unidas
pelo "NO" à continuação do golpe militar.
No Brasil, agora não é momento para divisão
no primeiro turno, mas para uma vitória acachapante contra a minoria que está
ao lado do golpe. Fazendo as urnas silenciarem as armas, não importa o que
pense, o que sinta e o que ordene o ministro da Defesa. Ele tem direito a um
voto, reconhecido pelas regras, com o mesmo valor de qualquer outro brasileiro
com mais de 16 anos. A força dessa unidade é a melhor defesa da vontade
democrata contra a força dos autoritários, dos quais, temos de reconhecer,
temos recebido sucessivos alertas, com a sinceridade dos arrogantes e dos
despudorados portadores de armas diante de desarmados acovardados.
*Professor emérito da UnB e membro da
Comissão Internacional da Unesco para o Futuro da Educação
Um comentário:
O alerta vale pra todos do campo democrático.
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