Revista Veja
A democracia permite a discussão sobre muitas coisas, mas não sobre seus princípios elementares
Muita coisa foi escrita sobre o dito de Lula de que a “democracia é relativa”. Segundo alguns, o presidente teria cometido um “erro”; outros falaram em “decepção”, pois teriam assinado a “carta pela democracia” e esperavam mais de seu líder. Li também que Lula “não sabe o que é o comunismo”, pois não teria “lido Lenin”, nem estudado a história soviética. Sejamos claros, não há “erro” nenhum, nem muita novidade. Ele sabe o que se passa em países como Venezuela e Cuba. Qualquer um pode saber, aliás. Basta dar um clique em Human Rights Watch ou no relatório da ONU sobre os “crimes contra a humanidade” do regime chavista. Não há nenhuma “incoerência” ou confusão aí. São apenas escolhas políticas. Lula sempre agiu como fiador das ditaduras na América Latina, que todos sabem quais são. Ainda na outra semana, Moisés Naím denunciou a estratégia chavista para procrastinar investigações sobre tortura e execuções extrajudiciais, dizendo que Maduro tenta “lavar a cara”, e que seu maior trunfo é “Lula continuar a abraçá-lo em público”.
O presidente está no seu direito, e imagino
que faça isso por convicção. Ele parece de fato acreditar que não exista um
grande problema com os presos políticos de Cuba, a quem já comparou a “bandidos
em São Paulo”. Quando FHC era presidente, o chanceler Lampreia foi a Cuba e se
reuniu com a oposição. Deixou uma clara mensagem sobre direitos humanos. São
escolhas. De onde vem a convicção de Lula? Não faço ideia. É possível que
venha dos anos de formação, dos debates da esquerda nos anos 80. Assisti a alguns
deles, ainda jovem. Me lembro da oposição entre a democracia como um “valor
universal” ou “instrumental”, sendo essa última visão amplamente majoritária.
Lembro dos líderes sandinistas e mesmo do embaixador cubano, com cara de
burocrata surpreso, sendo ovacionados em congressos. Naquele universo, ainda se
falava em “construir o socialismo”, numa época em que o mundo tratava da
abertura e reforma do Estado, e o “socialismo real” dava seus últimos suspiros.
Minha intuição é a de que Lula aprendeu alguma coisa ali. Basicamente, que
aquilo era uma boa retórica para agitar a militância, como aconteceu no Foro de
São Paulo.
Outra razão para essa conversa toda é que
ninguém dá bola. Todo mundo já aprendeu a lidar com o “modo Macunaíma” do mundo
político brasileiro, do qual Lula é uma boa síntese. Um mundo cuja regra básica
é a seguinte: ajuste seu discurso de acordo com o público, sabendo que ninguém
vai acreditar demais no que você está falando. Afora isso, alguém acha que
exista muita gente genuinamente preocupada, por aqui, com a “tortura em Cuba e
na Venezuela”? E nisso é preciso ser justo. Vale o mesmo para o “outro lado” de
nossa polarização. Ou alguém acha que um líder que faz sua carreira política
elogiando o regime militar brasileiro, como Bolsonaro,
tem na democracia um “valor universal”? Nosso “relativismo”, sim, é
democrático. Mesmo que exista quem tente se mover por princípios, mesmo contra
a maré, nestes tempos difíceis.
O curioso é que esse é um debate
intelectualmente resolvido, há bom tempo. Ainda me lembro das minhas leituras
juvenis de Norberto Bobbio e sua insistência em explicar que são “as regras do
jogo” que “distinguem os sistemas democráticos dos não democráticos”. Regras “amadurecidas
durante séculos de provas e contraprovas, e consagradas em nossos sistemas
constitucionais”. Vão aí a alternância de poder, a liberdade de reunião e de
opinião, as garantias individuais. A democracia permite a discussão sobre
muitas coisas, mas não sobre esses princípios elementares. Pode-se mudar o
sistema tributário ou dar autonomia ao BC. O que não pode é impedir a oposição
de disputar eleições, como fez a Venezuela, ou mandar banir ou prender os
ativistas “do outro lado”. Se fizer isso, se está “relativizando”. Mexendo o
nervo central da democracia, e aí temos um problema.
A democracia vive dois grandes desafios. Um
deles foi bem diagnosticado por Larry Diamond: “Talvez, pela primeira vez,
nossas democracias tenham um adversário efetivamente competitivo: a China”.
Adversário que joga no campo do inimigo, na economia de mercado, e vem se
saindo muito bem. Diferentemente de autocracias como a Rússia, a China dispõe
de um modelo a ser exportado. Modelo fundado exatamente sobre a tese da “relativização”.
A ideia de que não há propriamente uma ditadura por lá, mas um “tipo diferente
de democracia”, como diz Diamond, capaz de produzir crescimento acelerado
dispensando os “tediosos padrões ocidentais de freios e contrapesos ao poder”.
Foi a tese do embaixador chinês, em um estranho artigo, acusando a conversa
sobre valores universais de “neocolonialismo”. Dizendo que “os países têm
culturas e sistemas sociais diferentes, e que não existe uma única forma de
praticar a democracia”. Se na minha cultura a democracia significa ter só um
partido, ou ir discretamente banindo a oposição, tudo bem. É nossa cultura, não
é mesmo?
O segundo desafio vem de dentro do próprio
sistema, e é dado pela revolução tecnológica. Quando observo os milhões de
pessoas que ingressaram na discussão, com as redes e a internet, e leio sobre
as guerras culturais, com sua cacofonia de temas morais e estéticos assaltando
o debate, me lembro de uma lição quase esquecida de Rousseau. Uma “verdadeira
democracia”, dizia ele, era muito difícil, porque exigia, entre outras coisas,
uma “grande simplicidade de costumes, que impeça a multiplicação de problemas e
discussões espinhosas”. Dois séculos e meio depois, as coisas andaram na
direção contrária. Ainda por estes dias lia sobre como a mudança de uma frase
no hino do Rio Grande do Sul, vista como preconceituosa (não entro no mérito),
mobilizando os debates no Parlamento. O mundo não só multiplicou as “discussões
espinhosas”, como o ódio barato e a irrelevância contaminaram o mundo. E
teremos de aprender a lidar com isso.
Na última reunião do Mercosul, o presidente
do Uruguai, Lacalle Pou, pediu que o bloco repudiasse o regime chavista e seu
expurgo de María Corina Machado. Disse que é assim que os países devem agir, pois
se trata de princípios com os quais não se deve brincar. Alguém dirá que
Lacalle Pou é um líder de “direita”, mas isso é apenas conversa fiada. Gabriel
Boric, o jovem presidente chileno, de esquerda, fez o mesmo quando contestou
Lula ao dizer que o autoritarismo na Venezuela “não é uma narrativa”, e sim uma
“realidade que vi na dor de milhares de venezuelanos”. A verdade é que é
possível ter líderes que se movam para além do pragmatismo e prezem pelas
“regras do jogo”. O problema talvez esteja em nós mesmos. Em nossa capacidade
de renovar e escolher líderes melhores. E quem sabe de dizer a qualquer um, de
esquerda ou direita, que apareça “relativizando” valores essenciais da
democracia, o que disse o antigo rei da Espanha, naquele raro momento de inspiração:
por que não te calas?
*Fernando Schüler é cientista político e
professor do Insper
Publicado em VEJA de 12 de julho de 2023, edição nº 2849
3 comentários:
■Destaquei um pedacinho deste maravilhoso artigo de Fernando Schüller.
▪Fernando Schüler escreveu::
▪" Na última reunião do Mercosul, o presidente do Uruguai, Lacalle Pou, pediu que o bloco repudiasse o regime chavista e seu expurgo de María Corina Machado. Disse que é assim que os países devem agir, pois se trata de princípios com os quais não se deve brincar. Alguém dirá que Lacalle Pou é um líder de “direita”, mas isso é apenas conversa fiada. Gabriel Boric, o jovem presidente chileno, de esquerda, fez o mesmo quando contestou Lula ao dizer que o autoritarismo na Venezuela “não é uma narrativa”, e sim uma “realidade que vi na dor de milhares de venezuelanos”. A verdade é que é possível ter líderes que se movam para além do pragmatismo e prezem pelas “regras do jogo”. O problema talvez esteja em nós mesmos. Em nossa capacidade de renovar e escolher líderes melhores. E quem sabe de dizer a qualquer um, de esquerda ou direita, que apareça “relativizando” valores essenciais da democracia, o que disse o antigo rei da Espanha, naquele raro momento de inspiração: por que não te calas? "
O artigo de Schüller, mais lá em cima, vale a leitura inteira.
A questão não é ser "de direita" ou "de esquerda" ; a questão é ao menos tentar não ser cínico ou cretino.
■Viva Gabriel Boric!
■Viva Lacalle Pou!
■Viva Maria Corina!
---Viva a esquerda!
---Viva a direita!
---Abaixo todos os tipos de populismo, os com retórica de direita e os com retórica de esquerda!!!
▪Uma vai grande aos que usam e abusam do povo e que condenam o povo à miséria e à opressão ditatorial!
▪E uma vaia maior ainda a quem fode o povo dizendo que está a defendê-lo.
É isto mesmo.
Magnifico.
MAM
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