O Estado de S. Paulo
Tomara que o feriado nacional deste ano venha em moldes diferentes daqueles que vimos no período de negacionismo, conspiração, muamba e milícia
O maior dos feriados nacionais está logo
aí. Mais duas semanas e teremos de atravessar aquela manhã enclausurada em
desfiles, com os recos inexpressivos marchando e tocando corneta ao mesmo tempo
e, para completar, as autoridades em cima do palanque apertando os olhos para
suportar a luminosidade asfáltica. Como tem sido há dois séculos, as paradas
militares, as criancinhas embandeiradas e os discursos que ninguém consegue
escutar marcarão a data cívica. Nada de novo sob o sol de quase primavera,
portanto.
Nada de novo, a não ser pelo significado das cores. Isso terá de ser diferente. É claro que o visual será o mesmo, pautado no dueto entre o velho verde e o indefectível amarelo. O sentido, porém, terá de mudar. O auriverde não pode mais seguir sendo o símbolo de acampamentos ilegais na porta de quartéis silenciosos. Camisetas canarinho não podem mais ser uma senha de golpismo.
Eis aí a questão que atazana o governo
federal. É uma questão semiótica. É uma questão grave. Na terça-feira, este
jornal noticiou que a Presidência da República está investindo R$ 3 milhões na
preparação do “desfile cívico-militar” com o objetivo de promover o “resgate”
da bicromia pátria, hoje prisioneira das trevas. O gasto talvez seja alto, mas
a causa é mais do que pertinente.
Trata-se de uma pauta do mais alto
interesse público, ainda que o problema a ser resolvido tenha, aqui e ali, o
aspecto de uma piada de mau gosto. Quando a gente pensa nas dondocas e
tchutchucas fantasiadas de lábaro estrelado brincando de marcha-soldado nos estacionamentos
do Exército, é inevitável pensar numa comédia bufa. O delírio antissistêmico do
governo que passou, dado o seu grau exacerbado de ignorância e despreparo,
nunca se dissociou de um roteiro meio pastelão. Mas não deixemos por menos.
Aquilo tudo nos ameaçou de verdade. Com seus lances risíveis, os golpistas não
estavam aí de brincadeira. Por isso, as tentativas de quartelada, mesmo que
ridículas, terão de ser levadas a sério. A democracia deve seguir firme na
investigação e na punição dos responsáveis pelos atentados contra o Estado de
Direito.
Pelos mesmos motivos, não podemos descuidar
do significado dos símbolos da Pátria. Que alternativa nos resta? Deixar as
cores da bandeira sequestradas pela infantilização reacionária dos fascistinhas
de WhatsApp e pela estupidez que depredou palácios em Brasília no dia 8 de
janeiro? Não. Ou viramos a página da desordem sígnica ou os cidadãos
minimamente informados vão continuar com uma ponta de inibição na hora de
desfraldar o estandarte. É preciso pintar o 7 de Setembro em novas bases.
Se trabalharmos bem, o uniforme da seleção
brasileira de futebol voltará a encarnar um sentimento positivo. Aliás, no
passado era assim. Não nos esqueçamos de que a cor da campanha das Diretas Já,
em 1984, foi o amarelo. No samba Pelas tabelas, Chico Buarque fez o seu
registro daquelas manifestações. “Quando vi todo mundo na rua de blusa
amarela”, canta o compositor, que não se refere às hordas golpistas de classe
média alta, mas ao povo que se levantou contra o arbítrio.
O sentido das cores já foi muito diferente.
Nos anos 1990, havia uma bandeira nacional enorme cobrindo uma parede inteira
da sala da diretora de redação da revista Capricho, que era a cartilha afetiva
das adolescentes brasileiras. A diretora que trabalhava naquela sala era Mônica
Figueiredo. Personalidade exuberante, de uma criatividade rebelde e excêntrica,
Mônica não tinha nada que lembrasse uma caserna. Não elogiava golpes de Estado
e não pactuava com a censura. Mônica jamais insinuou que um notório torturador
devesse merecer lugar de honra na história do nosso país. Ela era o oposto
dessas moléstias do espírito: uma editora inadministrável, que não batia
continências a ninguém.
Naquele tempo, há uns 30 anos, a revista
Placar, que funcionava no mesmo prédio da Editora Abril, numa travessa estreita
da Avenida Berrini, teve o seu logotipo redesenhado pelo designer Roger Black.
A inspiração veio diretamente do “pendão da esperança”, que, para aquela
geração, era sinal de alegria, leveza e liberdade, como o amarelo das Diretas
Já. Todo mundo ali gostava da bandeira. A gente dava bandeira.
Essas lembranças vão aqui para dizer que
não há nada de errado em sonhar com a tal ressignificação das cores nacionais.
Não há nada de impossível nessa pretensão. A bandeira não precisa ser um
carimbo na fachada de um prédio a indicar que ali mora um sujeito que tem armas
dentro de casa e é machista, racista, xenófobo e mesquinho. A bandeira pode
muito bem representar outra mensagem, oposta, melhor e superior. Em uma
palavra, civilizada.
Como nação que se respeita, o Brasil tem de
tomar para si esse objetivo. Vai nos fazer bem. Tomara que o 7 de setembro
deste ano venha em moldes diferentes daqueles que vimos nesse período de
negacionismo, conspiração, muamba e milícia. Seria uma justa homenagem a Mônica
Figueiredo, que morreu no domingo, em Lisboa, vítima de câncer de pulmão.
*JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP
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