O Estado de S. Paulo
A melhor forma de acabar com os populismos é finalizar com os seculares ciclos que alternam ilusão e desencanto
Ernesto Sabato (1911-2011), um grande
escritor numa terra (Argentina) de grandes escritores – como Borges e Cortázar,
por exemplo –, tem uma frase que diz: “um gênio é alguém que descobre que a
pedra que cai e a lua que não cai representam um só e mesmo fenômeno”.
O debate econômico – e também o político – parece girar articulado entre dois polos. De um lado, aqueles que, na retórica, estariam comprometidos com o crescimento, a redução da pobreza e a redistribuição de renda. No imaginário popular, para esta alternativa, denominada inadequadamente de progressista, não existiriam restrições monetárias ou fiscais. “Gasto é vida” e despesas fiscais nutririam a demanda, propiciariam a ampliação do capital físico do país e abririam espaço para políticas públicas na área social. Ocorre que, no médio e no longo prazos, por meandros já bem identificados e conhecidos, as restrições assomam. Inflação, depreciação descontrolada da moeda, queda dos salários reais, aumento da pobreza e reversão do ilusório aumento do nível de atividade criam um ciclo que abre espaço para viabilizar politicamente o outro polo.
O fim do ciclo da ilusão tenta ser postergado
com controle de preços e da taxa de câmbio, identificação de potenciais
culpados por meio das mais diversas teorias conspiratórias. Todo um
voluntarismo fadado ao fracasso.
Do outro lado, o desencanto abre espaço
político ao polo oposto. A alternativa para a crise assume como característica
o ordenamento apressado do equilíbrio fiscal, a liberação dos mercados,
políticas que seriam a condição necessária e suficiente para retomar o controle
do descalabro da economia e iniciar um ciclo de crescimento.
A Argentina é uma ilustração desse vaivém
entre os polos. Talvez o caso mais extremo dessa oscilação. O populismo
tradicional ou histórico (que naquele país leva o nome de peronismo), no seu
tradicional fracasso, nutriu a esdrúxula – mas real – possibilidade de que um
“populismo pós-moderno” assuma o governo.
Um anarcocapitalista, com verborragia
tresloucada, propõe – para reverter inflação de mais de 100%, pobreza de 40% e
reservas líquidas no Banco Central negativas – receitas de política
supostamente ancoradas na denominada Escola Austríaca. Fechar a autoridade
monetária nacional, dolarizar a economia e mercantilizar até os mais recônditos
âmbitos da vida privada (com possibilidade de mercados para órgãos humanos)
seriam as medidas tanto para reverter a caótica conjuntura quanto para tirar a
Argentina de uma decadência estrutural quase secular.
A “Escolha de Sofia” que los hermanos
enfrentarão no segundo turno, no próximo dia 19, dificilmente terá um final
feliz. A depender da preferência da maioria, o final pode ser mais ou menos
tenebroso.
No caso de o peronismo ser o vencedor, já
conhecemos tanto as políticas quanto os resultados. As políticas serão as
clássicas de qualquer regime populista, especialmente quando falamos do
peronismo. Como medidas de estabilização, instituir preços máximos e controles,
culpando os ditos especuladores pelos subsequentes desabastecimentos. Foge ao
seu espectro de raciocínio a impossibilidade de controlar preços e quantidades
ao mesmo tempo. A escassez de divisas será contornada mediante controle de
câmbios e o preço do dólar, fora do mercado oficial, passará a ser uma questão
de polícia, e não de política econômica. Ou seja, a política econômica e seus
resultados não são um cisne negro.
No caso de o anarcocapitalista triunfar,
estaremos mais próximos do que Keynes denominaria de incerteza radical. Tentará
o candidato implementar, custe o que custar, o seu programa de governo? O
exercício do poder, em caso de triunfo, moderará sua prática? Será menos
ideologizada? Segundo o teorema de Baglini (atribuído ao ex-deputado argentino
Raul Baglini), quanto mais longe do poder, mais irresponsáveis são as propostas
de um candidato.
Essa polarização, embora não seja sua
exclusividade, adquire na Argentina traços quase dramáticos, como costumeiro na
sua convulsionada história. Os que, como eu, têm uma trajetória pessoal
comprometida com a democracia e com o avanço econômico associado ao progresso
social não podem ficar alheios ao futuro imediato do país vizinho. Que lições
podemos auferir disso tudo?
Sempre defendi, e acho que o exemplo
argentino corrobora, que não devemos poupar esforços para colocar, diante dos
eleitores, alternativas não populistas. Uma democracia alimenta-se da
existência de projetos diferenciados.
Mina, no entanto, o regime democrático a
população que identifica a política como uma uniformidade, em que a denominada
classe política busca interesses próprios. Mas também a mina a necessidade de
escolher entre possibilidades que ou não mostraram viabilidade no passado ou
que são um salto no vazio. Não devemos medir esforços para construir projetos
políticos que a população veja como exequíveis e nos quais se identifiquem
possibilidades de progresso material, dirigidos com particular atenção aos
segmentos mais vulneráveis. A melhor forma de acabar com os populismos é
finalizar com os seculares ciclos que alternam ilusão e desencanto.
*Economista
2 comentários:
Sim, Serra! Acontece que os caras foram eleitos, meu!
Quem?
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