Lewandowski deve integrar o combate ao crime
O Globo
Novo ministro tem oportunidade de fazer o
governo federal enfim assumir sua responsabilidade em área crítica
O jurista Ricardo
Lewandowski, de 75 anos, assume o Ministério da
Justiça e Segurança Pública com talvez a missão mais espinhosa
do governo Luiz Inácio Lula da
Silva: domar a violência que
fustiga o país, aterroriza os brasileiros e ameaça a imagem do presidente.
Embora os números registrem queda de 4% nos assassinatos no ano passado, nas ruas predomina a sensação de insegurança, atestada por pesquisas de opinião e pelo senso comum. Oito em cada dez brasileiros acreditam que a violência se agravou, segundo pesquisa Quaest de novembro. As ações do governo para debelar a crise não têm sido bem recebidas pela população. A gestão de Lula na segurança é considerada ruim ou péssima por 50% e regular por 29%, mostrou o Datafolha em dezembro.
É verdade que os índices de criminalidade têm
recuado, mas continuam em patamares altíssimos. Segundo o Escritório das Nações
Unidas sobre Drogas e Crimes (Unodc), o Brasil registrou, em 2021, 22,4
homicídios intencionais por 100 mil habitantes, quase o quádruplo da média
global.
Nem é preciso recorrer a números para
entender o que acontece. O cotidiano sobressaltado por guerras entre
quadrilhas, tiroteios a qualquer hora e em qualquer lugar, balas perdidas,
roubos, furtos, golpes praticados por bandidos de dentro dos presídios — a
situação é muito grave. O alarme soa em todos os cantos do país. Infelizmente,
o Planalto não dá ouvidos.
Administrações petistas sempre resistiram a
assumir a pauta de segurança. Não só por motivos ideológicos, mas também por
conveniência. Temendo desgaste, empurram o combate à violência aos
governadores, sob a alegação de que é tarefa constitucional dos estados. Ora, a
missão deve ser de todos e, a exemplo de áreas essenciais como saúde ou
educação, cabe à União coordenar as políticas públicas. Está claro que,
sozinhos, os estados não têm condições de combater facções criminosas que atuam
no Brasil todo e controlam rotas do tráfico internacional.
O governo federal não pode continuar mantendo
essa postura. O Estado já não controla parte relevante do território, tomado
por organizações criminosas. A Amazônia hoje concentra algumas das cidades mais
violentas do país. No Rio, traficantes cobraram da prefeitura “pedágio” para
permitir uma obra pública. Na Rocinha, uma das maiores favelas do país, chefões
já lucram mais com a extorsão aos moradores do que com o tráfico. A
Constituição Cidadã de 1988 ainda não chegou àquele trecho da cidade. A lei ali
é outra.
Inúmeros exemplos internacionais mostram que
reverter situações críticas é possível. Para isso, o governo precisa assumir
seu dever, pondo em prática uma política nacional de segurança pública
articulada com os estados. A chegada de Lewandowski traz uma oportunidade de
atuação mais firme do governo federal numa área onde ela é crucial. Foi bom sinal
a escolha do secretário de Segurança, o ex-procurador-geral de Justiça de São
Paulo Mario Luiz Sarrubbo, conhecido pelo combate ao crime
organizado. Formar uma equipe técnica é importante, mas não basta se não houver
plano de ação. Ele deveria começar pela integração das polícias, que hoje atuam
isoladamente e raramente compartilham informações e estratégias. Lewandowski
afirmou que a segurança pública será sua prioridade. Seria fundamental que
fosse também a de Lula.
Ao paralisar acordo Mercosul-UE, Macron
atinge todos os países
O Globo
Não faz sentido jogar fora duas décadas de
negociações apenas para atender a demandas dos agricultores
Pressionado pelo lobby agrícola, o presidente
da França, Emmanuel
Macron, pediu interrupção nas negociações do acordo de
livre-comércio entre União
Europeia (UE) e Mercosul.
Nos últimos dias, agricultores têm imposto bloqueios em estradas francesas e
promovido protestos na tentativa de paralisar o país. O movimento já mobilizou
produtores rurais na Holanda e na Alemanha e começou ontem a se espalhar por
Bélgica, Itália e Espanha. Os manifestantes estão de olho na reunião da
Comissão Europeia marcada para hoje. O alvo, além do acordo com o Mercosul, são
as importações de produtos baratos da Ucrânia e exigências ambientais que
impõem maiores custos de produção.
É na França, maior produtor agrícola da UE,
que se concentra a resistência à abertura comercial. O que distingue os
franceses do campo é a força política de atividades vistas como parte da
identidade nacional. Discursos sobre “segurança alimentar” e preocupações
ambientais disfarçam o protecionismo. Ao ceder aos agricultores, Macron comete
três erros: 1) impede a expansão de negócios europeus no Mercosul; 2) perde a
chance de aumentar a influência da UE num mundo em que se acirra a disputa
entre Estados Unidos e China; 3) perde acesso a produtos baratos, sobretudo do
Brasil e da Argentina.
Macron chegou à Presidência em 2017 disposto
a acelerar reformas. Nos últimos tempos, perdeu o ímpeto reformista e tem
sucumbido a grupos de interesse. A mão de obra francesa no setor agrícola caiu
de 6% da força de trabalho em 1991 para 3% — menos que na Espanha ou Portugal,
países favoráveis ao acordo com o Mercosul.
O interesse dos agricultores da UE é
compreensível. A Política Agrícola Comum (PAC) europeia foi criada na década de
1960, numa negociação em que os alemães aceitaram dar incentivo a agricultores
em troca de acesso a mercados para bens industrializados. Hoje, ela suga um
terço do orçamento da UE. Entre 2023 e 2027, os agricultores europeus receberão
US$ 330 bilhões em subsídios. Pequenos produtores são contemplados com apenas
um quinto disso. Cerca de 20% das propriedades, muitas delas pertencentes a grandes
grupos familiares ou à Igreja, ficam com 80%.
Depois de 20 anos de negociação, os termos do
acordo entre UE e Mercosul foram fechados em 2019, e a assinatura final
dependia de detalhes. A devastação da Amazônia no governo Jair Bolsonaro
ofereceu aos protecionistas o pretexto ideal para paralisar as negociações. Com
a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, as conversas foram retomadas. Os
europeus insistem na tecla ambiental. Macron argumenta que os produtores
europeus estão sujeitos a exigências que inexistem para os do Mercosul. Lula,
em contrapartida, decidiu rediscutir a abertura do mercado de compras
governamentais.
Tudo parecia, porém, caminhar para um
entendimento. Até o recuo de Macron. Agora a negociação volta a parar. Não faz
sentido, depois de mais de 20 anos de conversas, o colapso de um acordo tão
abrangente apenas para atender aos interesses dos agricultores.
Bancos centrais de Brasil e EUA não fugiram
do figurino
Valor Econômico
Fed não sinaliza quando iniciará redução de
juros e BCB mantém ritmo de cortes
O Federal Reserve (Fed) fez em sua reunião de
ontem o que era esperado: manteve os juros entre 5,25% e 5,5% e deu mais sinais
de que seu próximo movimento, sem prazo, será de corte nas taxas. Esse momento
ainda não chegou, pois o Fed espera “ganhar maior confiança de que a inflação
se move sustentavelmente para 2%”, segundo o comunicado oficial. Mas isso pode
estar mais perto do que antes. Em nova frase no comunicado, o banco acredita
que “os riscos para alcançar as metas de emprego e inflação estão indo em
direção a um melhor equilíbrio”. Ou seja, a ameaça de nova alta dos juros está
mais distante. O Banco Central do Brasil (BCB) fez mais um corte de 0,5 ponto
percentual e vai manter esse ritmo pelo menos nas duas próximas reuniões.
O Fed, segundo seu presidente, Jerome Powell,
mantém-se à espera da continuação da série de números positivos sobre o
comportamento da inflação para iniciar o corte de juros. Powell reiterou o
dilema do banco entre fazer uma redução precipitada das taxas e ter de
consertar o erro depois, voltando a aumentar os juros, e a espera exagerada
para afrouxar a política monetária, com custos significativos sobre a atividade
econômica e o emprego.
O estado da economia americana não é
incompatível com novas altas esporádicas da inflação e tampouco dá ao Fed
segurança de que continuará caindo até 2%. Pelo comunicado, “a atividade
econômica está se expandindo em um ritmo sólido”, enquanto o aumento de vagas
de trabalho moderou seu crescimento - “segue forte e o desemprego continua
baixo”. O resultado dessa performance é que a inflação cedeu, “mas continua
elevada”.
Powell deixou claro que todos os membros do
Comitê de Política Monetária acreditam que os juros devem cair e que isso
acontecerá “em algum momento ao longo do ano”. As medidas de inflação têm sido
muito favoráveis. O núcleo dos gastos pessoais de consumo (PCE) em médias
móveis de três e seis meses, dessazonalizadas e anualizadas, já se encontra em
2%. Mas para o Fed nada garante que continue assim. O índice em 12 meses findos
em janeiro foi de 2,9%, ainda bem acima da meta. Powell deixou claro um dos maiores
temores do banco: o de que a inflação se estabilize acima da meta.
A paciência do Fed tem apoio nos números. O
ritmo da economia é forte: cresceu 4,9% no terceiro trimestre de 2023, 3,3% no
quarto e 3,1% no ano, ainda bem acima do crescimento potencial estimado pelo
banco, de 1,8%. O crescimento robusto, mesmo após a mais rápida elevação dos
juros em quatro décadas, levou o Fed a abandonar seu discurso de que seria
necessário que a economia crescesse abaixo do potencial por algum tempo para
que a oferta e a demanda de trabalho se equilibrassem.
Há progressos importantes no mercado de
trabalho, mas ainda não decisivos. Powell disse que a oferta de vagas é maior
do que o número de pessoas dispostas a preenchê-las - há 1,44 vaga aberta por
trabalhador à procura de emprego, a maior proporção desde setembro. O
desemprego está abaixo de 4% por dois anos consecutivos, algo que, segundo
Powell, não acontece há meio século.
O Fed tem flexibilidade para se adaptar a
mudanças rápidas no cenário. Powell disse que não hesitará em cortar os juros
caso o mercado de trabalho dê sinais evidentes de fraqueza. E indicou que a
atitude seria a mesma caso a inflação acabe desabando e se situando abaixo dos
2%. Nenhum desses dois cenários se apresentou ainda. Os reajustes salariais
atingiram 3,5% em 12 meses, o que para a consultoria Oxford Economics, já se
colocaria numa faixa compatível com a inflação em 2%, levando-se em conta um
aumento de produtividade de 1,5%.
Com a possibilidade de uma recessão
desaparecendo da maior parte dos cenários dos investidores, o Fed deixa de ter
um incentivo óbvio para iniciar o corte das taxas. Com a economia ainda forte,
manter os juros altos por mais tempo será necessário até que a inflação ceda
mais. Powell sugeriu que isso provavelmente não ocorrerá até março, data da
próxima reunião do banco, embora admita que as perspectivas da economia sigam
incertas e inseguras. Pela disposição do Fed indicada na reunião de ontem, o
início dos cortes, salvo mudanças inesperadas, ocorrerá depois de março. A
possibilidade de um corte de juros no próximo encontro do Fed, medida pelo
mercado futuro de juros, caiu de 60% para 48% após a entrevista de Powell.
O BCB também não fugiu do figurino previsto.
Os números do IPCA-15 de janeiro mostraram maior disseminação na alta dos
preços e alguma alta na inflação subjacente de serviços e núcleos. Isso, como
era esperado, não impediu o BC de sinalizar a manutenção do ritmo de cortes,
porque com a inflação esperada para o ano, de 3,5%, a taxa de juros real ainda
é muito contracionista, com bom espaço para reduções adicionais. A aceleração
dos cortes, por seu lado, ficou distante. Há alguma desancoragem das expectativas,
com projeção de 3,5% para a inflação do ano, que persiste por 27 semanas,
segundo o boletim Focus. Enquanto não houver uma aproximação maior da meta de
3%, o ritmo atual será mantido.
Desinteligência
Folha de S. Paulo
Disputa entre PF e Abin expõe controle
deficiente sobre mecanismos de informação
"A gente nunca está seguro. O
companheiro que eu indiquei para ser o diretor-geral da Abin foi meu
diretor-geral da PF entre 2007 e 2010. É uma pessoa em que tenho muita
confiança e por isso chamei, já que eu não conhecia ninguém da Abin."
A frase, dita pelo
presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a rádios na terça (30),
reflete o espanto que a crise instalada entre a Polícia Federal e a Agência
Brasileira de Inteligência provoca.
A operação da PF que apontou indícios da
criação de uma "Abin paralela", ao que se supõe destinada a fornecer
dados de adversários ao governo de Jair Bolsonaro (PL), abriu uma caixa de
Pandora.
Noves fora a voltagem política da
investigação, que incluiu batida na casa de Carlos Bolsonaro, filho do
ex-presidente, expõem-se entranhas de um corpo obscuro do Estado —sua área de
espionagem.
Todo país lida com isso, e questões de
transparência e competência volta e meia vêm à tona —seja na bisbilhotagem
americana de líderes aliados nos anos 2010 ou no fracasso de Israel em
antecipar o mega-atentado do Hamas em 2023.
Por aqui, o chamado Sistema Brasileiro de
Inteligência, centrado na Abin, reúne 48 órgãos em 16 ministérios. A supervisão
do trabalho é de uma comissão mista no Congresso da qual mal se ouve falar. Ao
Tribunal de Contas da União, cabe o papel de checar as faturas.
É algo bem mais frouxo do que o que ocorre
nos EUA, onde a Agência Central de Inteligência abriga uma inspetoria
independente que presta contas a diversos órgãos, a começar por poderosas
comissões do Congresso, que usualmente garantem o sigilo de dados sensíveis.
No cerne da
operação da PF está um software espião adquirido em Israel. Se é
evidente que a agência não deve propagandear capacidades, o véu de segredo
permite usos pouco republicanos delas —exatamente o que está sob apuração.
Do ponto de vista da Abin, como o agora
demitido diretor-adjunto Alessandro Moretti disse no passado,
há a percepção de uma perseguição política por parte da PF, órgão cujo
empoderamento no primeiro mandato de Lula no Planalto fez emergir conflitos de
competência e disputas por poder.
O fato de Moretti ser um delegado federal
ligado ao ex-diretor da agência Alexandre Ramagem, deputado pelo PL-RJ e
protegido de Bolsonaro, é sintomático das linhas cruzadas dessa politização.
Já a Polícia Federal se ampara em
autorizações do hiperativo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal
Federal, mais uma vez atraindo críticas a seus métodos.
O resultado, até aqui, foi a queda de Moretti
e a troca de seis diretores da Abin, mas nada garante que Lula poderá dizer que
se sente mais seguro a partir de agora.
A natureza do ditador
Folha de S. Paulo
Maduro descumpre acordo para eleição; EUA não
tinham opção fora retomar sanções
Sanções econômicas constituem ferramenta
importante em embates geopolíticos. Em casos de regimes autoritários, como
evidenciam Rússia e Irã, elas atrapalham os negócios de autocratas, mas em
geral se revelam insuficientes para impedir violações da liberdade política e
dos direitos humanos.
É o que também se verifica na Venezuela. Em
outubro de 2023, o ditador Nicolás Maduro assinou um acordo com a oposição pelo
qual se comprometia a realizar eleições presidenciais competitivas e abertas a
monitoramento internacional no segundo semestre deste ano.
Como parte desse pacote, os EUA aceitaram
afrouxar as sanções econômicas que impõem a Caracas.
As chances de Maduro de fato promover um pleito limpo nunca foram muito
expressivas, mas até dezembro o pacto parecia válido, e a ditadura chegou a
libertar alguns presos políticos. No entanto, como se temia, o movimento de
abertura não passou de encenação.
No final de janeiro, a Suprema Corte da
Venezuela, praticamente um anexo do palácio de Miraflores, decidiu tornar
inelegível por 15 anos a principal candidata da oposição, María Corina Machado.
Com isso,
Washington retomou as restrições. Determinou que empresas americanas
que haviam sido autorizadas a fazer negócios com a estatal venezuelana de
mineração liquidassem suas posições.
É válida a atitude do governo Joe Biden de
tentar levar a Venezuela, no âmbito de negociações multilaterais, a uma
abertura democrática. Pode-se questionar a eficácia do método, porém trata-se
da arma disponível. Medidas mais gravosas configurariam um "casus
belli".
A Casa Branca não tinha alternativa que não
retomar as sanções. Não fazê-lo significaria desmoralizar de vez esse
instrumento.
O problema é que Maduro e seu entorno já
avançaram demais na autocratização do regime. Se promoverem uma eleição limpa,
a derrota é provável. Cerca de 7 milhões de venezuelanos (20% do total)
deixaram o país na última década. É mais do que razoável supor que haja
insatisfação generalizada com os rumos desastrosos da política e da economia.
Se perderem, poderiam responder pelos crimes
cometidos, seja numa Venezuela democrática seja sob o Tribunal Penal
Internacional. A tendência, portanto, é que resistam até o fim, a despeito do
sofrimento imposto à população.
Infelizmente, é mais fácil criar uma ditadura
do que desmontá-la.
Inteligência sem controle
O Estado de S. Paulo
Se nem o presidente da República está
tranquilo com a atuação da Abin, nenhum cidadão tem razão para dormir em paz
sabendo que seus direitos e garantias fundamentais podem ser violados
Como órgão central do Sistema Brasileiro de
Inteligência (Sisbin), instituído pela Lei 9.883/1999, a Agência Brasileira de
Inteligência (Abin) tem uma atribuição específica e relevante para o País:
fornecer ao presidente da República e aos ministros de Estado informações e
análises estratégicas que possam instruir o primeiro escalão do governo federal
no processo decisório.
À luz do interesse nacional, portanto, a Abin
é um órgão fundamental na estrutura do Poder Executivo. O trabalho de seus
servidores, se bem feito, garante que as decisões tomadas pelo presidente e
seus auxiliares diretos – decisões que afetam não só a vida de 210 milhões de
brasileiros, mas também a posição do Brasil em questões geopolíticas – estejam
consubstanciadas pela verdade dos fatos e resultem de uma abrangente reflexão
que leve em conta os pormenores de cada situação que demande a intervenção do
Palácio do Planalto.
Como a imprensa tem revelado, essa Abin
republicana parece ter deixado de existir. Hoje, não é seguro afirmar que a
Abin seja um órgão que se preste exclusivamente ao estrito cumprimento de sua
finalidade legal, agindo “com irrestrita observância dos direitos e garantias
individuais, fidelidade às instituições e aos princípios éticos que regem os
interesses e a segurança do Estado”, como determina o artigo 3.º, parágrafo
único, da referida lei.
A Polícia Federal (PF) investiga a grave
suspeita de que, durante o governo de Jair Bolsonaro, a Abin tenha sido
transformada, como dissemos, num arremedo de SNI para servir aos interesses da
família do ex-presidente, e não do País. No governo de Lula da Silva, por sua
vez, não se tem presente a relação de confiança que há de haver entre os
agentes que produzem informações sensíveis para a tomada de decisão e as
autoridades que devem recebê-las, a começar pelo chefe de Estado e de governo.
No dia 30 passado, Lula demitiu o
diretor-adjunto da Abin, Alessandro Moretti, o segundo na hierarquia do órgão.
Sobre Moretti paira a suspeita de manter ligações com o ex-diretor da agência e
deputado bolsonarista Alexandre Ramagem (PL-RJ), a fim de repassar-lhe
informações sigilosas colhidas pela Abin sobre temas de interesse do clã
Bolsonaro. Em meio a essa onda de paranoia e desconfiança, há quem defenda até
a demissão do atual diretor da agência, Luiz Fernando Corrêa. Afinal, foi dele
a decisão de nomear Moretti como seu diretor-adjunto.
Seja qual for o novo organograma da Abin, o
fato é que, transcorrido mais de um ano do governo Lula, permanece o evidente
descontrole do País sobre seu aparato de inteligência, como se seus membros
pudessem agir como bem entendessem e devessem obedecer a ordens flagrantemente
ilegais. É uma obviedade, mas vale ressaltar: num país democrático, agente de
inteligência não é espião a serviço do governante de turno. Essa subversão até
pode render bons roteiros de cinema. Na vida real, é uma afronta à democracia e
à ordem constitucional, além de um risco para os cidadãos. Ora, se nem o
presidente da República está tranquilo com a atuação da Abin – ou Lula não
teria ordenado a demissão de seu diretor-adjunto –, nenhum cidadão tem razão
para dormir em paz sabendo que seus direitos e garantias fundamentais podem ser
violados.
O descontrole se manifesta em situações
comezinhas. Na operação que cumpriu mandados de busca e apreensão em endereços
de Ramagem, a PF recolheu um notebook e um celular da Abin em posse do atual
deputado, malgrado o fato de ele não fazer parte do órgão de inteligência desde
março de 2022. Questionada pelo Estadão, a Abin afirmou que “não deu falta dos
equipamentos”, pasme o leitor, e que nem sequer deveria tentar reavê-los após a
demissão de Alexandre Ramagem, pois “a responsabilidade de devolver o material
era do então diretor”. Ou seja, o órgão central do Sisbin admite não ter
cuidado com ativos que podem carregar informações sensíveis que deveriam ser
secretas. É uma perigosa esculhambação.
O valor do diálogo político
O Estado de S. Paulo
Deveria ser a regra, mas é preciso celebrar
quando adversários como Lula e Tarcísio deixam de lado as diferenças para
viabilizar um bem para a sociedade, caso da ligação Santos-Guarujá
O presidente Lula da Silva e o governador de
São Paulo, Tarcísio de Freitas, chegaram a um acordo para a construção de um
túnel que ligará as cidades de Santos e Guarujá. Pela negociação, selada nesta
semana em Brasília, União e Estado vão dividir os custos e, sobretudo, os
louros do empreendimento. O termo de cooperação para o início das obras deve
ser assinado em uma cerimônia no litoral paulista para celebrar os 132 anos do
Porto de Santos.
O acordo é verdadeiramente histórico. A
ligação entre as duas cidades é aguardada há praticamente um século pelos
moradores da região. Quase 80 mil pessoas fazem a travessia do canal
diariamente por balsas, com filas de espera que variam conforme o fluxo de
veículos e as condições climáticas. Cerca de 10 mil caminhões precisam fazer o
percurso por rodovia, em um trecho de 45 km.
O túnel terá 1,8 km de extensão e reduzirá
consideravelmente o tempo de ligação entre as duas margens da Baixada Santista,
região por onde passam nada menos que 30% das exportações e importações
brasileiras. É quase inacreditável, portanto, que se tenha levado tanto tempo
para resolver um dos maiores gargalos logísticos do País.
É fato que havia dúvidas a respeito da melhor
forma de conectar os dois municípios, por túnel ou ponte, mas disputas
políticas pela paternidade da obra explicam a maior parte da letargia
decisória. Por isso mesmo, é preciso celebrar quando duas das principais
lideranças políticas do País conseguem deixar de lado suas diferenças políticas
em nome de um bem comum.
Lula da Silva, inicialmente, planejava
financiar o túnel com recursos da União, por meio do Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC), sem participação do Estado. Tarcísio de Freitas, por sua
vez, preferia executar a obra por meio de uma Parceria Público-Privada (PPP) e
ameaçava travar a emissão de licenças se a União seguisse com o plano original.
Tudo se encaminhava para uma batalha que
duraria anos e resultaria em mais uma oportunidade perdida. Foi o que ocorreu
durante os mandatos de Jair Bolsonaro na Presidência e de João Doria no governo
do Estado, ferrenhos adversários que protagonizaram uma disputa política de
consequências deletérias para ambos, mas, sobretudo, para a população paulista.
Lula da Silva, a bem da verdade, é mais
habilidoso que Bolsonaro. Sem maioria no Congresso, o petista investe na
polarização sem deixar de reconhecer a necessidade de negociações entre,
segundo suas palavras, “aqueles que não gostamos e os que não gostam de nós”.
Tarcísio, no entanto, oscila entre o
pragmatismo que se exige do governador de São Paulo e a fidelidade a um
padrinho político que sempre rejeitou peremptoriamente o diálogo com
adversários e boicotou ações compartilhadas entre entes federativos à revelia
da própria Constituição.
Este jornal não se furta de criticar o
governador quando ele insiste em seguir o receituário populista do
bolsonarismo, em especial na área de segurança pública. A Operação Escudo, as
ações na Cracolândia e sua resistência ao uso de câmeras em fardas policiais
desprezam todas as evidências e só podem ser explicadas pela lealdade a
Bolsonaro e sua virulenta claque.
No episódio do túnel entre Santos e Guarujá,
no entanto, Tarcísio mostrou que sabe agir como estadista. Foi a Brasília,
reuniu-se com Lula e os ministros da Casa Civil, Rui Costa, e de Portos e
Aeroportos, Silvio Costa Filho, seu colega de partido, o Republicanos.
Tarcísio, ao ignorar os celerados
bolsonaristas que se abespinham toda vez que aparece na foto com Lula,
revela-se à altura do cargo e deferente ao espírito constitucional, que
incentiva a colaboração entre União, Estados e municípios. Manter um diálogo institucional
com o presidente e demais autoridades do Executivo já foi visto como algo
natural e deveria ser resgatado.
Não foi a primeira vez que Tarcísio
demonstrou ter essa compreensão. Basta lembrar a simbólica caminhada que uniu
representantes dos Três Poderes e os governadores na Esplanada dos Ministérios
após o episódio do 8 de Janeiro, bem como as ações emergenciais depois das
fortes chuvas que atingiram o Litoral Norte no ano passado.
O Brasil será um país bem melhor quando
gestos civilizados como esses deixarem de ser notícias excepcionais.
Democracia da carochinha
O Estado de S. Paulo
Judiciário controlado por Maduro confirma punição à principal opositora do ditador venezuelano
O Tribunal Supremo de Justiça da Venezuela
confirmou no último dia 26 a inelegibilidade por 15 anos de María Corina
Machado, a ex-deputada consagrada nas primárias da oposição para enfrentar o
ditador Nicolás Maduro na eleição presidencial de 2024. Eram favas contadas.
O compromisso do regime chavista com os
Estados Unidos de realizar um pleito livre e justo – em troca da retomada de
seus embarques de petróleo e gás ao mercado americano – surgiu sem o fio de
bigode de uma das partes em outubro passado. Acreditar nos termos aceitos por
Caracas, isto é, esperar que a Venezuela chavista pudesse se tornar minimamente
democrática de uma hora para outra, era crer num conto da carochinha. Para
preservar-se no poder, Maduro jamais dispensaria os mecanismos autoritários à
sua mão.
A decisão da mais alta corte venezuelana foi
mais uma trava levantada contra a mobilização da oposição em torno de uma
candidatura capaz de destronar Maduro, há quase 14 anos no poder. Henrique
Capriles, outro nome forte entre os eleitores avessos ao regime, tornou-se
também inelegível. No início de novembro, quando se contavam apenas 13 dias
desde a assinatura do acordo com os EUA em Barbados, o mesmo tribunal suspendeu
os efeitos das primárias da oposição. O Ministério Público, em paralelo,
desencadeou uma perseguição aos integrantes da comissão organizadora daquele
pleito. Mais iniciativas certamente virão.
É assim que as coisas funcionam na Venezuela,
onde Maduro controla sem nenhum pudor o Judiciário, o Legislativo e o
Ministério Público e não titubeia em valer-se dos aparatos de coerção das
Forças Armadas, da Guarda Nacional Bolivariana e das milícias chavistas contra
quem quer que seja. Nesse caldo de cultura autoritária, o mesmo Ministério
Público ordenou, na semana passada, a prisão de 32 pessoas sob a acusação de
conspirar contra o regime. Não precisou, obviamente, apresentar qualquer
evidência de caráter não fictício às instituições pelegas. Menos ainda à
sociedade.
A reação negativa de Washington estava nos
cálculos de Caracas. Até que demorou, diante dos seguidos atropelos de Maduro
ao Acordo de Barbados nos últimos dois meses. Mas veio nesta semana, na forma
de sanções imediatas à importação de ouro e da retomada das travas ao ingresso
de petróleo venezuelano a partir de abril. A inelegibilidade de María Corina e
de Capriles jogou por terra a tese da Casa Branca de que, sob os auspícios do
comércio petroleiro, a Venezuela pudesse abrandar seu regime. Ledo engano. O acordo
está desfeito.
A sequência de ações do regime contra a oposição confirma a vocação autoritária de Maduro e o valor nulo de sua palavra – a mesma que foi empenhada no compromisso da Venezuela de não invadir a região de Essequibo, da Guiana, firmado em Brasília. O Brasil de Lula da Silva poderia exercer pressão sobre o companheiro Maduro. Mas não o faz e, diante da mais recente demonstração de arbitrariedade de seu companheiro, mantém-se em obsequioso silêncio – provavelmente porque ainda acredita na fábula de que a Venezuela seja uma democracia.
Menos conflitos entre os Poderes
Correio Braziliense
A harmonia dos Três Poderes está estremecida,
tornando o que está ruim muito pior para os brasileiros, em todos os setores.
Os desafios sociais e econômicos do Brasil
são tão grandes quanto o seu território. Mas o país segue dividido pela
pluralidade das ideologias políticas, que dificulta a convergência de posições
e ações em favor de uma sociedade mais equânime, com mais educação, saúde,
oportunidades de trabalho, menos violência, e sem fome e miséria. A harmonia
dos Três Poderes está estremecida, tornando o que está ruim muito pior para os
brasileiros, em todos os setores. A esperança de dias melhores fica mais pálida
diante dos embates e entraves que dificultam avanços na perspectiva de
construção de um país melhor.
O primeiro ano do terceiro mandato de Lula
foi dedicado à arrumação da casa, sobretudo no campo social. Foram retomados
projetos, como Minha Casa, Minha Vida, Bolsa Família, Farmácia Popular, Merenda
escolar, relançamento da campanha de vacinação, retomada da demarcação e
proteção dos povos originários e tradicionais, entre outras ações e encerrou o
ano com a aprovação da Reforma Tributária, há três décadas em tramitação no
Congresso. No total, foram 28 realizações, nos campos social, ambiental e
econômico.
O Legislativo tem papel fundamental neste
processo de transformação do país, a fim de assegurar aos brasileiros qualidade
de vida digna, independentemente das convicções ideológicas pessoais. Assim, é
indispensável o comprometimento dos parlamentares com a melhoria da educação,
da saúde, da segurança pública, da defesa do patrimônio ambiental, do respeito
aos direitos individuais e coletivos, dos povos originários e tradicionais,
como estabelece a Constituição de 1988. O Congresso não pode se tornar uma cabine
de asfixia dos valores civilizatórios. Pelo contrário, deve ser aliado das
aspirações da sociedade, que deseja viver em um Brasil com mais civilidade,
menos violência e que ofereça serviços públicos de qualidade em todos os níveis
e a todos os cidadãos.
As divergências entre os Poderes reforçam a
polarização que é radicalmente intransigente desde as eleições de 2018. Hoje, é
notório o conflito entre eles. O ápice do acirramento ocorreu em 8 de janeiro
do ano passado, quando adeptos da extrema-direita insurgiram-se contra o regime
democrático e vandalizaram as sedes do Executivo, do Legislativo e do
Judiciário, ávidos por uma intervenção militar que ressuscitasse a ditadura
militar. A união momentânea dos Três Poderes impediu o golpe.
Uma harmonia que se diluiu nas semanas
seguintes, quando o Supremo Tribunal Federal começou a julgar e a punir os
vândalos. O acirramento cresceu com a identificação de financiadores e, hoje,
se aproxima dos líderes do frustrado atentado contra a democracia. Inadmissível
que legisladores produzam leis favoráveis à impunidade de aliados, construindo
projetos que colidem com a Constituição, que assegura direitos e deveres iguais
para todos.
O Judiciário como guardião da Constituição e
da democracia, e em harmonia com o Legislativo e com o Executivo, entre suas
muitas atribuições, tem um papel comum aos tribunais constitucionais, de “dar
limite ao poder político majoritário”, afirmou o presidente do Supremo Tribunal
Federal, ministro Luís Roberto Barroso, durante o Colóquio Franco-Brasileiro de
Direito Constitucional, ocorrido no Congresso, em outubro passado. Não se trata
de tolher a independência de outro poder, mas garantir, de modo colaborativo, o
respeito aos mandamentos constitucionais, evitando instabilidades que possam
acarretar insegurança e danos às conquistas da sociedade.
Hoje, o Correio Braziliense relança
o caderno Direito e Justiça, um espaço que abriga artigos de juristas,
advogados, autoridades do Judiciário, dando aos leitores informações e visões
diferentes sobre os mais diversos temas, abraçados neste campo.
As divergências entre os Poderes da República não são peculiaridades singulares do Brasil. Elas ocorrem em todas as nações, e devem ser superadas pelo diálogo, instrumento indispensável à construção de consensos, que traduzam os anseios majoritários da sociedade e em favor do bem comum. São esses entendimentos que a sociedade brasileira espera dos que ocupam os espaços de decisão, a fim de conduzir o Brasil a trilhar um caminho de harmonia, paz, progresso e desenvolvimento.
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