O Estado de S. Paulo
O que se passa nos EUA não são acontecimentos políticos, é uma atmosfera de decadência das estruturas que refletem as injustiças sociais
Não há nada misterioso em política. Nem o
extravagante é mais encenação. A linguagem falseadora do político de distorcer
dificuldades para agravar sentimentos de aversão visa a mascarar a
impossibilidade de falar por todos. Os EUA têm motivos para perceber que a
democracia poderá ser derrotada por novas circunstâncias: não tem mais peso
suficiente para impedir que o feitiço do desprezo tolerante – que finge aceitar
a diferença, mas atrofia a esperança de justiça para todos – evite a demagogia
dos feiticeiros da intolerância. Donald Trump é o mais melancólico aproveitador
das angústias do povo. Soube projetar sua amargura elitista contra a democracia
na alma de gente apavorada com a hostilidade social, política e econômica que
não arrefece com mudança de governo.
O que se passa nos EUA não são acontecimentos
políticos, é uma atmosfera de decadência das estruturas que refletem as
injustiças sociais. Combina o abuso do líder que não abre mão de querer seduzir
continuamente o cidadão, misturado aos aspectos polêmicos da agressividade de
expressão incitadora da discriminação que domina nossa época. Há no mundo cada
vez mais sócios da necessidade de transgredir prestigiando pessoas de mau
gosto. Tudo facilitado pela falência da escola, a epidemia de tecnologia, o fim
da cultura clássica e erudita, a pressa em usufruir, a regressão do bom gosto
vocabular e auditivo, a fala e o ouvido infantis, a ilusão de que a riqueza se
distribui naturalmente. Um conformismo social geral de um povo que não sabe se
é contra ou a favor, desconhece quem lhe causa sofrimento, aceita que ideias
podem ser transportadas por palavrão ou aviões de guerra.
Donald Trump está ensaiando seu retorno ao poder de onde nunca saiu por inteiro. Suas chances de vitória são reais. Ainda que Joe Biden siga sendo o favorito, parte do mundo vislumbra o contrário.
Os problemas da sociedade norte-americana são
cada vez mais relacionados com o crescimento dos seus inimigos internos. A
liberdade e a prosperidade de um país estão dentro dele. De nada adianta estar
cheio de princípios quem não se submete a eles. Talvez os EUA estejam
convencidos de que sua liderança mundial não lhe rendeu nada em termos de
felicidade pessoal e que a liberdade de que o país desfruta seja sinônimo da
voracidade com que sua população consome tudo, como se o corpo todo fosse uma
única boca voraz.
Um segundo mandato de Trump aceleraria a
desagregação global em várias câmaras regionais. Ele viria com a chancela
eleitoral sobre seus atos mais contraditórios, como o de deixar acéfala a
Organização Mundial do Comércio (OMC), sair do Acordo de Paris, deixar a
Parceria Transpacífica a ver navios, atacar as alianças históricas com a Otan,
tratar com brutalidade e chauvinismo a questão migratória nos EUA, entre
outros.
Para Rússia e China, Trump seria
particularmente bem-vindo. Afinal, a visão de Trump de que o papel dos EUA no
mundo é oposto à ideia de que o país deve agir como esteio da ordem liberal
coaduna com os anseios das potências que se ressentem da hegemonia americana.
Teríamos um EUA muito mais isolacionista e focado somente em si mesmo.
No plano doméstico, há também risco de maior
interferência política nas Forças Armadas e em outras carreiras de Estado.
Trump não se conforma com a independência e a lealdade à Constituição com que
agiram oficiais americanos durante seu primeiro mandato.
Para além de projetar cenários até a eleição,
muito se especulará sobre as razões da força eleitoral de Trump. Uma força que
faz parte de uma onda internacional que destaca políticos espetaculosos, sem
freios e com pouco apreço real pelos ritos democráticos. Algumas dessas razões
são encontradas nas próprias temáticas centrais da atual eleição.
Uma dessas temáticas é a chamada pauta de
costumes, que é uma versão caricata das discussões sobre os direitos das
pessoas. A questão do direito ao aborto, por exemplo, é um dos temas principais
da eleição. Se, por um lado, a base de apoio mais ferrenha do Partido
Republicano é a favor de restringir ao máximo o direito ao aborto, a maioria
dos cidadãos americanos apoia que se proteja o direito de escolha da mulher.
Por isso, para o lado do Partido Democrata, a defesa que Biden faz do direito
ao aborto é uma das armas de sua campanha contra Trump.
Outro tema central é a questão da imigração.
Trump está usando da mais agressiva retórica para afirmar sua intenção de
combater a entrada de vários grupos de imigrantes nos EUA. Seus planos
discriminatórios visam a certos grupos específicos. Essa é uma questão em que o
debate nos EUA está contaminado a tal ponto que não há modelo civilizatório
para tratar o tema. É cada um querendo mostrar-se mais duro que o outro e a
razoabilidade escorrendo pelo ralo.
Donald Trump é a melhor tradução da confusão
que virou o uso das ideias democráticas e das consequências da crise de
clarividência que se tornou a liderança norte-americana no mundo. Construiu
para si próprio uma ideia de liberdade que combinou bem com o mau gosto
profundo do mundo digital moderno. É o mais preparado para se aproveitar da
própria decadência.
*É sociólogo
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