quarta-feira, 13 de março de 2024

Mariliz Pereira Jorge - Prezado Lula

Folha de S. Paulo

Não adianta ignorar traumas profundos, eles voltam para nos perturbar

Presidente, entendo que o senhor prefira fugir de questões desconfortáveis. Todos fazemos isso. É mais fácil ignorar velhas dores do que encará-las. O problema é que traumas profundos permanecem silenciosos até que voltam a nos perturbar como músicas irritantes que grudam no cérebro dias a fio. Foi o que aconteceu nos últimos anos, quando o hino nacional embalou um projeto golpista. Dá para acreditar que falaríamos sobre ditadura na segunda década do século 21?

Veja, eu não era nem nascida em 1964. Quando o Brasil recuperou a democracia, nem entendia o valor da liberdade. Só adulta tomei conhecimento das violações generalizadas, da censura, das perseguições políticas, das torturas e das mortes. Mas há brasileiros que não sabem ou não acreditam nas atrocidades cometidas neste país tão alegre, tão do bem, tão da galera, por pura negligência do Estado, que nunca foi capaz de encarar os esqueletos escondidos na caserna.

O resultado é que censura, golpe, regime de exceção voltaram a ser pauta nos jornais, assunto no almoço de família, objetivo de uma turma autoritária. Décadas para passar o passado a limpo, mas se viu mais empenho em não melindrar militares do que em punir torturadores, honrar vítimas e fortalecer o Estado de Direito.

Em 2008, presidente, o senhor foi contra a revisão da Lei da Anistia, que perdoou os crimes cometidos durante a ditadura militar. Agora determina que eventos oficiais em memória dos 60 anos do golpe sejam evitados. Para não irritar milicos que já estão irritados porque correm o risco de levar gancho porque são o que são, golpistas?

Presidente, somos ainda uma sociedade vulnerável e cheia de traumas, que voltam como um vizinho chato que finalmente reclama do barulho. O tempo não separa o passado do presente e muito menos evita que ele se repita. O que enterra períodos brutais da história é investigação, processo, cana e memória viva.

 

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