Folha de S. Paulo
O analista concentra-se nas nuances; o
pregador, na caricatura que lhe serve
"Não rir, nem lamentar, nem odiar, mas
compreender". A prescrição de Spinoza, que serviu como guia para os
intelectuais públicos, saiu da moda. Na era das redes sociais, os intelectuais
públicos desistiram de decifrar os fenômenos políticos, dedicando-se à tarefa
banal de exprimir indignação moral perante suas bolhas ideológicas. De
analistas, tornaram-se pregadores. Daí, o pequeno escândalo provocado por meus
comentários, aqui e na GloboNews, sobre a ascensão da Reunião Nacional (RN)
francesa.
Num passado menos envenenado, rótulos políticos serviam para descrever fenômenos dinâmicos. A atual RN, de Le Pen, emanou de um longo processo de revisões históricas e dramáticas cisões internas que ainda não se concluiu. Nessa trajetória, renunciou às suas raízes, fincadas na França de Vichy, para aderir à narrativa gaullista da França da Resistência. A estratégia permitiu-lhe capturar a maior parte do eleitorado da centro-direita tradicional, relegando o velho partido gaullista a um gueto. A extrema direita tornou-se direita nacionalista.
A direita nacionalista é reacionária,
xenófoba e islamofóbica, como a extrema direita, mas subordina-se às
instituições democráticas. A RN só desistiu do chamado à deportação em massa de
imigrantes para concentrar-se no objetivo principal: cancelar o princípio do
"direito do solo", instituído pela Revolução Francesa, substituindo-o
pelo "direito do sangue". Não é pouco: o "direito do solo"
funciona como limitação constitucional das erupções de xenofobia e racismo.
Os pregadores, que preferem rir, lamentar e
odiar, nem tentam explicar a mutação da RN. No lugar disso, apelam ao
pensamento mágico, alegando que tudo não passa de uma operação de camuflagem.
Seria, igualmente, mera camuflagem a mutação histórica do PT, de partido
anticapitalista que rejeitou assinar a Constituição de 1988 para o atual
partido de esquerda engajado na busca da governabilidade?
O PT chegou ao Planalto porque mudou. A RN
atingiu o umbral do poder pelo mesmo motivo, o que a torna mais –não menos!–
perigosa para os direitos humanos e a coesão social da França. A ascensão do
partido de Marine Le Pen ameaça consumir a "França de 1789" na
fogueira da "França eterna". Já o partido original, extremista, de
Jean-Marie Le Pen, produzia apenas ruídos, por vezes sonoros, nas franjas da
sociedade francesa.
Não é prudente traçar paralelos superficiais
entre a Europa e os EUA –ou o Brasil. O Maga, movimento de Trump que tomou de
assalto o Partido Republicano, é um fenômeno extremista, como atesta a
contestação violenta à eleição de 2020. O bolsonarismo pertence à extrema
direita, como prova a trama golpista que se desenrolou entre dezembro de 2022 e
o 8/1 de Brasília. Na Europa, porém, os partidos da direita extremista, como a
Afd alemã ou o Vox espanhol, permanecem circunscritos à periferia política. O
perigo iminente mora nos partidos que moveram-se para a direita nacionalista,
como o Fidesz, de Orbán, o Irmãos da Itália, de Meloni, e a RN francesa.
O analista concentra-se nas mutações e nas
nuances; o pregador, na caricatura bruta que serve à sua causa. Os arautos do
bolsonarismo só sabem utilizar os rótulos comunista e socialista (ou o que, na
sua febre infantil, imaginam serem variações, como "liberais
globalistas"). Já os intelectuais de esquerda, também prisioneiros do
teatro das redes antissociais, reconhecem apenas neonazismo e fascismo (ou
extrema direita, que tratam como sinônimo dos anteriores). Uns e outros
comportam-se como influencers, investindo no mercado da propaganda.
O jovem pastor Pedro, conta-nos Esopo,
acostumou-se a fazer troça com os habitantes da aldeia, gritando
"lobo!" para atrair a ajuda deles. No dia em que o lobo emergiu da
floresta, ninguém deu-lhe atenção – e lá se foi seu rebanho. Pedrinho, pare de
representar.
Um comentário:
O colunista é de centro,rs.
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