Folha de S. Paulo
Há uma tentativa de recusar que ascensão da
ala é um movimento de esgotamento terminal das ilusões da democracia liberal
Na semana passada, Wilson
Gomes publicou, nesta Folha,
um artigo em que exortava a aceitar a normalização pretensamente inevitável da
extrema direita. Chamando as reações a tal processo de "dogmas"
animados por alguma forma de cruzada moral contra setores muitas vezes
hegemônicos das populações mundiais, o autor julgou por bem lembrar que
"se o voto é o meio consagrado pelas democracias para legitimar pretensões
políticas" não haveria razão alguma para agir como se a extrema direita
não fosse democraticamente legítima. Por fim, não faltou estigmatizar aqueles
que falam em "fascismo" ao se referir atualmente a tais correntes.
Esse artigo não é peça isolada, mas representa certa tendência forte entre analistas liberais e conservadores do mundo inteiro. Tal tendência consiste em recusar a tese da ascensão mundial da extrema direita como movimento catastrófico global de consolidação autoritária e de esgotamento terminal das ilusões da democracia liberal.
Vimos algo semelhante há pouco quando
comentaristas políticos tentavam explicar que um partido como o
francês Renovação Nacional, com seu racismo e
xenofobia orgânicos, seus vínculos com o passado colaboracionista e colonial
francês, seu aparato policial pronto para atirar contra tudo o que se assemelhe
a um árabe, não era afinal um problema assim tão grande e sequer deveria o
partido ser chamados de "extrema direita".
Posições como essas não são apenas
equivocadas. Não há catástrofe política que não tenha sido minimizada pelos
que, em momento de crises estruturais, se apresentam como
"antidogmáticos", "equilibrados" e "avessos a palavras
de ordem". Diria, na verdade, que esse pretenso "equilíbrio" é
uma peça fundamental do problema e de sua extensão.
Pois aos que pregam a normalização da extrema
direita eu diria que ela nunca teria força tão grande atualmente se não
estivesse há muito normalizada. Não pelos eleitores, mas pelos políticos e
formadores de opinião liberais. Há uma aliança objetiva entre os dois grupos.
As políticas anti-imigração precisam ser
inicialmente implementadas pelo "centro democrático" para que a
extrema direita cresça. A paranoia securitária precisa estar cotidianamente na
boca dos analistas políticos "liberais" para que a extrema direita
conquiste eleitores e eleitoras.
Idem para a equalização entre militantes de
movimentos sociais e tropas de bolsonaristas, trumpistas e afins. Ou seja,
quando a extrema direita enfim sobe ao poder normalmente ela precisa apenas
chutar uma porta podre. A normalização real já tinha definido a agenda do
debate político.
Contra essa tendência, eu diria que se espera
da classe intelectual ao menos a capacidade de chamar de gato um gato.
Insistir, por exemplo, que um discurso marcado pelo culto à violência,
pela indiferença em relação a grupos mais vulneráveis, pela concepção paranoica
de fronteiras e identidade, pelo anticomunismo congênito, pela transferência de
poder a uma figura, ao mesmo tempo, autoritária e caricata, tem um nome
analítico preciso, a saber, "fascismo", é uma forma de sensibilizar a
sociedade para os riscos e tendências reais que ela enfrenta atualmente.
Lembrar disso em um país como o Brasil, que
conheceu nos anos 1930 um dos maiores partidos fascistas fora da Europa, que
teve dois militares integralistas na junta militar de 1969, que teve um
presidente que há alguns anos assinava cartas a nação com o lema "Deus,
pátria, família", é sinal de honestidade intelectual mínima. A
universidade brasileira já tem uma responsabilidade enorme em ter tratado o
fascismo estrutural em nossa sociedade com zombarias até vir um governo marcado
por genocídios indígenas,
massacres espetacularizados em favelas e 700 mil mortos na pandemia em nome da
preservação das dinâmicas de acumulação capitalista.
Recusar a normalização da extrema direita não
significa ignorar os sofrimentos reais de seus eleitores, a precarização
crônica da situação social dos que a apoiam. Muitos menos significa impor
discursos morais no lugar de decisões políticas.
Significa não compor de forma alguma com as
soluções da extrema direita, ter a capacidade de recusar de forma absoluta sua
maneira de definir o debate. Significa tensionar a sociedade com uma visão
alternativa de transformação e ruptura. Mas talvez seja exatamente isso que
alguns mais temam.
2 comentários:
" Tensionar a sociedade com uma visão alternativa de transformação e ruptura. "
Çei...
😏😏😏
Boa reflexão.
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