O Globo
A História é mesquinha com quem condena. São
comuns os julgamentos em que promotores e/ou magistrados encarceram réus
acompanhando a vontade dos poderosos ou ainda o sentimento da opinião pública.
Passa o tempo, e a poeira do tempo acaba os encobrindo. É o paradoxo da
biografia do advogado Sobral Pinto (1893-1991). Todo mundo se lembra do campeão
na defesa das liberdades públicas nas ditaduras do Estado Novo e de 1964. A
poeira cobriu a memória do combativo promotor dos anos 20, que pedia cadeia
para os tenentes insurretos. (Passados 40 anos, os tenentes viraram generais da
última ditadura e continuavam o detestando.)
O Supremo Tribunal Federal condenou a 14 anos de prisão em regime fechado a cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos. No dia 8 de janeiro de 2023 ela escreveu com batom “Perdeu Mané” na estátua da Justiça que enfeita a Praça dos Três Poderes. Houve algo de cenográfico na decisão. A maioria dos ministros acompanhou o voto de Alexandre de Moraes. Tudo bem, mas o mesmo Moraes havia concedido a Débora o benefício da prisão domiciliar.
Os ministros derrubaram o entendimento de
Luiz Fux, que condenou Débora a um ano a seis meses. Fux baseou-se nos fatos.
Débora chegou a Brasília às 13h do dia 7 de
janeiro, indo para um dos acampamentos que pediam um golpe de Estado. Fux
disse:
— Destaque-se que, durante os atos praticados
no dia 8 de janeiro de 2023, só permaneceu na parte externa da Praça dos Três
Poderes, não tendo adentrado em nenhum dos prédios públicos então depredados e
destruídos (nem do Congresso Nacional, nem do Supremo Tribunal Federal, nem do
Palácio do Planalto).
Mais:
— Há prova apenas da conduta individual e
isolada da ré no sentido de pichar a estátua da Justiça utilizando-se de um
batom.
Acrescente-se ainda:
i) não há qualquer prova do envolvimento da
ré com outros réus, tampouco de sua participação, mínima que seja, nos demais
atos praticados nas sedes dos três Poderes;
ii) não há indício de que a ré tenha
adentrado algum dos edifícios, auxiliado outros acusados ou empregado violência
contra pessoas ou objetos.
Uma pena de 14 anos atende a uma parte da
opinião pública e de poderosos ocasionais, mesmo sabendo que Débora foi mandada
para prisão domiciliar. O voto de Fux foi para o arquivo das opiniões vencidas.
Lá, estará na companhia do voto de 1970 do
ministro Alcides Carneiro, no Superior Tribunal Militar, contra a manutenção de
uma sentença que condenou o historiador Caio Prado Jr. a quatro anos e seis
meses de prisão por uma entrevista inócua a um jornalzinho de estudantes. À
época, um marechal aplaudiu a prisão porque “serviria para dar um exemplo aos
intelectuais”. Carneiro queria anular a condenação, mas seus colegas decidiram
apenas reduzi-la para um ano e seis meses, mantendo-o preso.
Carneiro morreu em 1976. Em vida, queria ter
o seguinte epitáfio:
— Foi juiz. Se não absolveu por compaixão,
não condenou por fraqueza.
A História não esqueceu Heleno Fragoso, o
advogado de Caio e de dezenas de presos. Em compensação, a poeira cobriu o nome
do oficial da Auditoria que perguntou a Caio Prado:
— O senhor é o homem que inventou esse tal de
marxismo no Brasil, não é?
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