Alta em pedidos de demissão reflete CLT obsoleta
O Globo
Modalidades de trabalho mais flexíveis têm
levado profissionais a abandonar seus empregos
A alta nos pedidos de demissão neste ano
revela a inadequação da legislação às modalidades contemporâneas de trabalho,
sobretudo as propiciadas pelo mundo digital. Com taxa de desemprego baixa,
pouco acima de 6%, o país vive uma onda de pedidos de desligamento para a busca
de trabalho próprio. Nunca tantos empregados formais pediram as contas, mostra
estudo do economista Bruno Imaizumi, da LCA 4intelligence, obtido pelo GLOBO.
O estudo revela que, em janeiro, 37,9% das demissões foram feitas a pedido. Em 2024, o percentual era de 24%. Em 2013 e 2014, período em que o desemprego também era baixo, foi de 29% e 30%. Boa parte ainda pede demissão simplesmente porque encontra um emprego que paga melhor. Mas uma hipótese tem se fortalecido entre os pesquisadores: outros fatores além do ganho salarial passaram a pesar mais na decisão de desligamento. Tem crescido a busca por atividades que permitem maior flexibilidade de horário, trabalho remoto ou prestação de serviços a diferentes empresas.
Instituída pelo Estado Novo de Getúlio
Vargas, a Consolidação das Lei do Trabalho (CLT) há tempos não consegue atender
aos anseios dos profissionais e às necessidades dos empregadores. Ao mesmo
tempo, a revolução digital torna algumas atividades obsoletas e cria espaço
para outras. Também permite reciclar o modo como certas profissões são
exercidas. A CLT se revela ultrapassada para regular atividades novas, como os
serviços de entrega ou motorista prestados por meio de aplicativos.
O custo que a legislação impõe às empresas
que geram empregos formais funciona faz tempo como incentivo para que contratem
fora da CLT. Mas hoje empregados também fogem dela. “Uma das grandes mudanças
no mercado de trabalho é a derrocada da CLT. Não na sua perspectiva objetiva,
de proteção, mas na expectativa de inclusão, de futuro”, afirma o sociólogo
Tiago Magaldi, do Núcleo de Estudos Trabalho e Sociedade da UFRJ. De acordo com
ele, a troca da carteira assinada pelo trabalho por conta própria é uma decisão
pragmática. “Os empregos formais a que esses trabalhadores de menor
qualificação têm acesso são muito ruins. O salário mínimo é quase o máximo.
Eles ganham mais em troca de não aceitar vínculo empregatício. Não são idiotas
manipulados, só fazem uma leitura pragmática da situação.”
Como o mercado evolui mais rápido que a
legislação, ela precisa ser atualizada. Em 2017, o Congresso aprovou mudanças
positivas nas leis trabalhistas, em especial o entendimento de que acertos
entre patrões e empregados — preservados direitos básicos — devem prevalecer
sobre os termos engessados da CLT. Mesmo assim, seria bem-vinda outra
modernização das regras trabalhistas.
Além da atualização para as novas modalidades
de trabalho, um ponto essencial é criar um sistema de financiamento da
Previdência que desonere a folha de pagamento de todas as empresas, cobrando um
pequeno percentual sobre o faturamento. Dessa forma, as empresas que geram mais
empregos não arcariam com a maior parcela do financiamento.
Campanha de vacinação escolar traz
oportunidade de reverter atraso
O Globo
Iniciativa é bem-vinda num momento em que
país começa a recuperar cobertura de vacinas
É auspiciosa a campanha de vacinação em curso
na rede escolar. A estratégia do governo é atingir crianças e adolescentes para
reverter o recuo ocorrido na cobertura vacinal nos últimos anos. A meta é, até
a próxima sexta-feira, aplicar em 90% dos alunos com menos de 15 anos cinco
vacinas do calendário obrigatório do Programa Nacional de Imunizações (PNI).
Serão 27,8 milhões de estudantes de 109,8 mil escolas, cerca de 80% das
instituições da rede pública de ensino.
De acordo com o Ministério da Saúde, as metas
de imunização foram alcançadas em apenas três das 19 vacinas do calendário
infantil no ano passado: BCG (tuberculose), tríplice viral (sarampo, caxumba e
rubéola) e reforço contra poliomielite. De janeiro a novembro, houve avanço em
15 vacinas, mas ainda insuficiente para trazer tranquilidade. A vacinação na
rede escolar traz uma nova oportunidade. As prioridades serão as vacinas para
febre amarela, tríplice viral, tríplice bacteriana (difteria, tétano e coqueluche),
meningocócica e contra HPV.
Os motivos do recuo na vacinação são
conhecidos: dificuldades de logística em razão de falhas na gestão do PNI, a
desinformação que circula nas redes sociais e os esforços insuficientes das
autoridades. É essencial resgatar o prestígio do PNI, outrora considerado
política pública exemplar. Como revelou O GLOBO, o governo Lula permitiu que,
desde 2023, vencessem 58,7 milhões de vacinas — 45,7 milhões contra Covid-19,
doença sob controle, mas que continua a matar. É injustificável comprar vacinas
perto do vencimento. As descartadas fizeram falta: em setembro, a Confederação
Nacional dos Municípios (CNM) informou que 65% das cidades não tinham doses
suficientes. É preciso evitar que erros grosseiros como esses continuem a
conspirar contra a saúde do brasileiro.
Quatro anos atrás, 76,7% dos municípios
relatavam atraso no recebimento de vacinas como problema recorrente, de acordo
com pesquisa do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems)
com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e o Ministério da Saúde. A
lista de dificuldades era imensa. Faltava pessoal para aplicar as doses,
estrutura para receber a população, o registro era feito manualmente, e havia
problemas para monitorar as metas locais.
A entrega era irregular para 60,4% dos
municípios, e a quantidade incorreta para 70,8%. Também não eram atendidas as
normas exigidas no armazenamento e havia perda de doses em 53,7%. As principais
causas eram vencimento de prazo, problemas na armazenagem a temperaturas baixas
e o não aproveitamento de frascos abertos. A baixa procura por vacinas era
relatada por 21,6% — problema que poderia ser contornado por campanhas de
comunicação dirigida aos públicos-alvo e busca ativa de quem precisa se
vacinar.
Por certo, nem todas as dificuldades foram eliminadas desde a pesquisa, mas avanços também se fazem sentir. Um bom presságio foi o Brasil ter recuperado o certificado de país livre do sarampo. Precisa persistir. A campanha nas escolas é um passo fundamental.
PT é um péssimo defensor das estatais
Folha de S. Paulo
Folha mostra que governo Lula colocou em
conselhos de empresas aliados e correligionários de formação diversa da área
Mais de três décadas depois de lançado o
programa de privatizações, o governo federal ainda controla diretamente 44
empresas, entre as quais algumas gigantes reúnem 78 subsidiárias, segundo a
contagem oficial mais recente.
Nesse conglomerado de 122 estatais se
encontram a maior empresa do país, a Petrobras,
cinco bancos, portos, aeroportos, os Correios, serviços de informática, de
comunicação, hospitais e uma produtora de hemoderivados, além de algumas
dezenas de companhias menos conhecidas e outras que mal merecem esse nome, dado
que não geram receitas para bancar suas operações.
Os defensores da manutenção desse enorme e
custoso aparato —caso do PT de Luiz
Inácio Lula da
Silva— argumentam que tais empresas têm importância "estratégica".
Isto é, atuam em áreas sensíveis para o desenvolvimento ou para a soberania
nacional e levam adiante empreendimentos que a iniciativa privada não pode ou
não quer assumir.
A mesma alegação é feita quando as estatais
têm prejuízos e déficits, o que se dá com frequência.
Assim sendo, então, estruturas com papéis tão importantes deveriam ser geridas
com o máximo de profissionalismo e qualificação, certo? Nesse ponto, porém, o
discurso ideológico dá lugar à real prática política e fisiológica.
Como
apontou levantamento da Folha, a gestão petista distribuiu postos em
conselhos de administração de estatais para aliados e correligionários cuja
formação tem pouca ou nenhuma relação com as áreas de atuação das empresas —que
incluem especificidades como pesquisa de recursos minerais e abastecimento de
produtos agrícolas.
É amostra que ajuda a entender por que o
governo Lula investiu contra a Lei das
Estatais, aprovada em 2016 para estabelecer normas mínimas de governança
após os escândalos de corrupção e má gestão revelados na Petrobras e em outras
companhias.
Por meio de uma iniciativa do aliado PC do B,
por exemplo, obteve-se em 2023 uma liminar do então ministro do Supremo
Tribunal Federal (STF) Ricardo
Lewandowski, hoje ministro de Lula, que permitiu nomeações políticas
proibidas pela lei. Estas permaneceram válidas quando, no ano passado, a corte
enfim decidiu
que a norma obviamente não contrariava a Constituição.
O controle das estatais também dá ao
governante de turno o poder de influir no comando de entidades a elas ligadas,
como fundos de pensão. É o caso da poderosa Previ, dos funcionários do Banco do
Brasil, hoje alvo de uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) devido a um
déficit de R$ 17,7 bilhões em 2024.
Distribuição de sinecuras, loteamento
político, maus negócios e corrupção são péssimos exemplos vindos de quem
pretende defender as estatais —ainda mais quando o argumento do papel
estratégico se esvazia diante de privatizações bem-sucedidas como as da telefonia,
da Embraer e
da Vale, outrora tidas como tabu.
Vários países, uma só saúde
Folha de S. Paulo
Acordo na OMS institui ações contra
pandemias; foi com multilateralismo, ora atacado por Trump, que Covid-19 foi
contida
Em 2019, uma doença misteriosa surgiu
na China.
O primeiro caso foi registrado em 17 de novembro na cidade de Wuhan; no dia 11
de janeiro de 2020, a primeira morte.
Era o início da pandemia de Covid-19. A mais
veloz e letal crise sanitária global desde a pandemia de gripe espanhola
(1918-1920). Até março de 2025, a enfermidade ceifou mais de 7 milhões de vidas
em todo o mundo e mais de 700 mil no Brasil. O planeta foi pego de surpresa.
Sistemas de saúde,
mesmo em países ricos, não estavam preparados.
Por isso, deve-se celebrar o acordo
histórico firmado entre as nações integrantes da OMS para prevenção e
enfrentamento de pandemias —o texto será apresentado na Assembleia Mundial da
Saúde em maio.
Os principais obstáculos na negociação, que
durou três anos, se deram sobre transferência de tecnologia a países de renda
baixa ou média e sobre propriedade intelectual e segurança jurídica,
necessárias para investimentos na indústria farmacêutica.
Ao final, chegou-se a um entendimento mútuo,
garantido apoio técnico aos países menos desenvolvidos e competitividade no
setor de medicamentos e
vacinas.
O documento segue a abordagem Uma só Saúde,
que elabora ações interdisciplinares transnacionais com base na dependência
entre homem, fauna, flora e ambiente —note-se que o vírus da Covid tem relação
genética com vírus encontrados em morcegos.
O projeto também estabelece uma rede global
de cadeia de suprimentos e logística e medidas para preparação, prontidão e
resiliência de sistemas de saúde. Cria, ainda, um mecanismo financeiro de
coordenação e um sistema de acesso a patógenos e compartilhamento de
benefícios. Tudo isso afirmando a soberania dos países e de suas leis internas.
Esse último aspecto é relevante, dado que o
discurso de algumas autoridades vinculadas à direita populista, como Donald Trump,
acusa uma suposta interferência autoritária externa da OMS. O atual
presidente americano inclusive retirou
os Estados Unidos da entidade e tem cortado subsídios de parcerias
internacionais na área sanitária.
É preciso saber se o acordo será colocado em
prática, mas, de todo modo, ele evidencia como o multilateralismo é vital para
o combate a pandemias.
Foi por meio dele que, apenas 13 meses após o estopim do surto, em 8 de dezembro de 2020, no Reino Unido, a primeira dose de vacina contra a Covid-19 foi aplicada; um mês depois, a enfermeira Mônica Calazans foi a primeira pessoa a ser imunizada no Brasil.
O debate que falta ao Bolsa Família
O Estado de S. Paulo
Nova regra deve reduzir prazo para que
beneficiários saiam do Bolsa Família após conseguir emprego e elevar a renda. É
uma boa oportunidade para debater o aperfeiçoamento do programa
O governo deve anunciar mudanças no Bolsa
Família em breve, reduzindo o tempo que beneficiários têm de permanência no
programa após obter aumento de renda e ultrapassar a linha da pobreza. Hoje, a
chamada “regra de proteção” garante que, em caso de conquista de emprego e
elevação da renda para um patamar acima de R$ 218 (desde que mantendo um
rendimento abaixo de meio salário mínimo), o beneficiário possa seguir por um
período no programa, recebendo o equivalente a 50% da parcela por 24 meses. A
expectativa é de que esse prazo caia para um ano.
Trata-se de uma mudança acertada, com
possibilidade de redirecionar o debate público sobre o Bolsa Família em duas
frentes: primeiro, atender a uma necessidade de desenhar regras de transição
mais suaves para o programa, evitando saídas abruptas que prejudicam os mais
vulneráveis; segundo, oferecer incentivos para os beneficiários caminharem em
direção à autonomia desejada, desvencilhando-se das amarras que os ligam por
tempo demais ao programa. Com transição adequada, pode-se, por exemplo, aplacar
as queixas segundo as quais o beneficiário do Bolsa Família prefere a
informalidade para não perder o benefício.
As mudanças em estudo pelo governo deveriam
servir, porém, como uma oportunidade maior: é hora de o País voltar a debater
mais seriamente, de forma desapaixonada e não dogmática, os mecanismos de
aperfeiçoamento do programa e, em especial, como instituir meios mais efetivos
para a chamada porta de saída. Com mais de 20 anos de existência, o Bolsa
Família é um robusto programa de transferência de renda, uma marca já enraizada
no imaginário brasileiro e um caso raro de política pública perene. Mas são justamente
essas condições – incluindo um irresistível apelo eleitoral – que acabam por
gerar uma espécie de aprisionamento nacional, como se criticá-lo fosse crime de
lesa-pátria. Não é.
Um dos pontos criticáveis é a ausência de
balizas firmes para a porta de saída, o fortalecimento da inclusão ao trabalho
e a busca de cidadãos autônomos. Segundo dados revelados pelo site Poder360, 7
milhões de famílias, de um total de 20,6 milhões inscritas, estão no programa
há pelo menos 10 anos. O ministro do Desenvolvimento Social, Wellington Dias,
lembra que o caminho para reduzir essa longa dependência é o fomento do emprego
e a criação de regras que permitam a essas pessoas se arriscar no mercado de
trabalho sem perder o benefício instantaneamente. Em outras palavras, é preciso
garantir que o caminho para a inclusão produtiva se dê de forma segura e
gradual. Uma regra que reduz o benefício imediatamente a zero ou a 50% é não só
abrupta como gera uma penalização imediata aos mais vulneráveis. Essa é uma
visão compartilhada por bons especialistas no assunto.
Resta desejar que o ministro convença o seu
chefe. Como líder populista que é, o presidente Lula da Silva costuma se apegar
aos ganhos políticos supostamente fáceis trazidos pela transferência de renda.
Em 2019, o governo federal gastava R$ 30 bilhões com o programa, marca que hoje
ultrapassa R$ 170 bilhões. O número de famílias subiu de 14 milhões para quase
21 milhões. O valor médio subiu de cerca de R$ 190 para quase R$ 700. Essa
musculatura toda, sem redução significativa da pobreza, foi adquirida pela atabalhoada
e eleitoreira criação do Auxílio Emergencial pelo governo Bolsonaro. Ao assumir
o mandato, Lula lançou o Novo Bolsa Família, estabelecendo o valor mínimo de R$
600 por família – na prática, mantendo o valor do auxílio instituído por Jair
Bolsonaro. É uma distorção a ser corrigida. O Banco Mundial, por exemplo,
sugere não um piso comum a todas as famílias, mas um benefício calculado com
base na quantidade de membros da família e um valor adicional por criança.
O Brasil parou de discutir as chamadas
condicionalidades – exigências impostas às famílias, como a frequência escolar
– e ainda patina na consolidação de incentivos para a inclusão produtiva, de
modo a fazer com que o Bolsa Família deixe de ser um recurso eleitoreiro para,
de fato, oferecer condições para que seus beneficiários do presente tenham uma
vida independente no futuro. É uma necessidade antiga, um debate do qual os
governos lulopetistas sempre tentaram escapar. Agora há uma notável chance em formação
no horizonte para voltar a encará-lo.
A democracia no divã
O Estado de S. Paulo
Índice da Democracia mostra que a recessão é
severa. Mas, ao contrário das autocracias, o remédio para os males das
democracias liberais está nelas mesmas: mais liberdade e representação
Manchetes do mundo destacaram 2024 como “o
maior ano eleitoral da História”. Metade da população foi às urnas em 75
países. Mas, a julgar pelo Índice da Democracia da Economist Intelligence Unit,
a celebração global da democracia poderia ser uma festa de despedida.
O Índice da Democracia avalia 167 países por
cinco critérios – processo eleitoral e pluralismo, funcionamento do governo,
participação política, cultura política, e liberdades civis –, agrupando-os em
quatro categorias: democracias plenas e falhas, e regimes híbridos e
autoritários. Segundo o estudo mais recente, a democracia está em sua pior
forma em duas décadas. O número de democracias diminuiu e o de autocracias
aumentou. Os fatores que mais se deterioraram foram liberdades civis e processo
eleitoral e pluralismo. Nos últimos anos, a degradação foi impulsionada
sobretudo pelo avanço das autocracias e declínios na governança e no
pluralismo.
O índice foca no problema: por que a
democracia não está funcionando? Mas a questão em si é problemática: não está?
À primeira vista, não. O alto índice de retaliação a incumbentes e apoio a
insurgentes populistas exprime a irritação popular. Por outro lado, a marca
distintiva das democracias é justamente a alternância de poder. As alternativas
populistas, frequentemente apontadas como causa do mal-estar das democracias,
também podem ser um sintoma. Os populistas podem ter as respostas erradas, mas
a adesão popular sugere que estão fazendo as perguntas certas.
Com o perdão do clichê, essa situação de
“copo meio cheio, meio vazio” é evidenciada por pesquisas globais que registram
uma ampla adesão aos valores democráticos. Ou seja, as pessoas não estão
frustradas com a democracia em si, e sim com seu funcionamento. Mas se a
democracia não está funcionando, aparentemente há vastas reservas morais para
fazê-la funcionar.
O modo de fazê-la funcionar depende da
identificação dos problemas. A biópsia do índice evidencia uma história de
“falhas” (de governos, partidos, políticos) e “déficits” (de igualdade,
integridade, opções, ideias, cidadania). A restauração do vigor da democracia
depende da reversão dessas falhas e déficits.
As causas da recessão são multidimensionais –
geopolíticas, econômicas, políticas, culturais, sociais – e sua interação é
complexa, mas todas apontam para uma solução, como o ponto de fuga de uma
perspectiva: a representatividade. Em todos esses anos, a fé nos ideais
democráticos se manteve. Mas o mundo mudou, e os canais de representação não
acompanharam essas mudanças. Governos e partidos se alienaram dos cidadãos e
não respondem aos seus anseios.
O problema das democracias é que estão
funcionando pela metade. Quando as urnas punem incumbentes ou premiam líderes
que se insurgem contra o status quo, funcionam como uma válvula de escape
da insatisfação popular, mas não como um motor de sua satisfação.
“A resposta aos desafios enfrentados pela
democracia representativa é não jogar o bebê com a água do banho. O desafio é
renová-la e revigorá-la trazendo questões reais de volta à arena do debate
público”, pondera o Índice da Democracia. “Isso significa ter uma verdadeira
disputa sobre políticas públicas entre partidos em competição. E significa
(re)construir relações entre os partidos e o eleitorado. A democracia é um
trabalho duro – ela exige novas ideias, políticas claras, engajamento com os
eleitores, vencer discussões com eles e mobilizá-los para criar uma maioria que
possa vencer eleições.”
Não se pode subestimar a crise da democracia,
tampouco sua resiliência. Há pouco mais de dois séculos só havia autocracias no
mundo, e ninguém tinha direitos democráticos. Hoje metade das nações são
democráticas e no ano passado 4 bilhões de pessoas foram às urnas. As
democracias já tiveram sua morte decretada e sofreram recessões severas,
notadamente no entreguerras e nos “anos de chumbo” da guerra fria. Mas, ao
contrário das autocracias, só precisam buscar em si mesmas os remédios para
seus males. É uma lei histórica: a agonia dos países autocráticos se cura com
menos autocracia; a agonia das democracias liberais, com mais liberdade e
representação.
O exemplo do trabalho no cárcere
O Estado de S. Paulo
Com 30% dos presos trabalhando, SC mostra que
é possível a reinserção com dignidade
Três em cada dez apenados em Santa Catarina
trabalham. Dos 28,1 mil condenados no Estado, 8.392 deles exercem alguma
atividade laboral, dentro ou fora dos presídios, com remuneração de um salário
mínimo mensal, hoje em R$ 1.518. Desse montante, metade vai para a família do
detento, um quarto custeia a sua própria estadia no sistema carcerário e o
outro quarto abastece uma poupança.
Essa exitosa iniciativa catarinense é um
processo com começo, meio e fim. Isso porque os presos recebem qualificação,
ofertada pelo Estado ou pelas empresas parceiras, trabalham durante o
cumprimento de sua pena, e, ao deixarem a prisão, levarão consigo o aprendizado
de uma profissão e uma quantia em dinheiro.
Dos 53 estabelecimentos penais, nada menos do
que 51 têm termos de parceria firmados entre o Estado e empresas privadas ou
órgãos públicos. Em 32 deles, os presos já em regime semiaberto saem das
penitenciárias para trabalhar, com autorização judicial, e regressam à noite. E
em presídio de alta segurança há a instalação de unidade produtiva de uma
empresa privada que também garante o trabalho remunerado até mesmo a condenados
com penas elevadas.
Segundo o governo de Jorginho Mello (PL), há
um esforço de Santa Catarina para se tornar referência nacional de
ressocialização dos detentos por meio do trabalho. Dos resultados já
apresentados, alguns pilares podem servir mesmo de inspiração para o País.
Enquanto em Santa Catarina todos os apenados
que trabalham recebem por isso, quase metade dos detentos que exercem
atividades laborais Brasil afora não é remunerada. Nos outros Estados, em troca
dos serviços prestados, os presos obtêm apenas a chamada remição, a redução de
suas próprias penas. Além disso, os apenados catarinenses atuam em serviços
mais complexos, como a fabricação de móveis, a confecção de uniformes e a
montagem de eletrônicos. Já no resto do País, a maioria dos presos trabalha com
artesanato.
O modelo de execução penal de Santa Catarina
é um alento para um país conhecido pelas condições subumanas a que submete seus
presos, haja vista que não é novidade para ninguém que, ao passarem pelo portão
de muitas penitenciárias do País, os apenados se deparam com um ambiente
degradante, com superlotação, por exemplo, e hostil à sua recuperação como
cidadão.
Dominadas por facções, que, como escolas do
crime, aprimoram o potencial delitivo dos detentos, muitas prisões podem ser
capazes de tudo, menos de reeducar um indivíduo. Por tudo isso, embora seja uma
exceção, Santa Catarina ensina como o Estado pode e deve garantir condições
dignas para que os presos cumpram suas penas e possam retomar as suas vidas com
suas famílias e a sociedade.
A aposta na ressocialização por meio do trabalho apresenta ao Brasil um caminho, que, se seguido, será longo, mas poderá melhorar o modelo nacional de persecução e execução penal. Santa Catarina mostra que a entrada no sistema carcerário não precisa significar a destruição definitiva da vida dos apenados, mas sim uma possibilidade de mudança e de recomeço com o mínimo de dignidade.
Dois homens do seu tempo
Correio Braziliense
Quis o destino que os ideais de Joaquim José
da Silva Xavier e Tancredo de Almeida Neves ecoassem Brasil afora e se
encontrassem no dia 21 de Abril
Nesta segunda-feira, o país reverencia a
memória de dois grandes brasileiros, nascidos em Minas Gerais, que tiveram
sempre a liberdade como princípio, meio e fim. O 21 de Abril marca o dia da
morte de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, expoente da Inconfidência
ou Conjuração Mineira, enforcado em 1792. Também os 40 anos do falecimento de
Tancredo Neves, eleito para a Presidência da República, embora não empossado
por problemas de saúde que o levaram a óbito em 1985.
Centenas de páginas já foram escritas sobre
esses homens vindos ao mundo na Região do Campo das Vertentes: Tiradentes, na
Fazenda do Pombal, município de Ritápolis; Tancredo, em São João del-Rei. Ao
primeiro, um mártir, se deve a presença heroica no movimento anticolonial
contra a derrama — cobrança forçada de impostos atrasados — e a dominação da
Coroa portuguesa. A Tancredo, morto 193 anos depois, o legado da democracia.
Primeiro presidente civil eleito no Brasil
após 21 anos do regime militar, Tancredo saiu vitorioso no Colégio Eleitoral
para escolha do novo presidente em 15 de janeiro de 1985. Era a nação emergindo
das sombras da ditadura, vislumbrando horizontes e confiante no mineiro
considerado conciliador. A eleição concretizou a Nova República e pavimentou o
caminho para a Assembleia Nacional Constituinte de 1988. Com a morte dele, o
vice na chapa, José Sarney, recebeu a missão de conduzir o país à
redemocratização.
Na Nova República, voltava à Presidência um
civil, e o país se despedia do tempo dos generais à frente do Executivo.
"Esta foi a última eleição indireta do país", afirmou Tancredo, no
discurso da vitória, perante "Deus e a nação". Diante do resultado,
agradeceu a mobilização popular, principalmente a campanha Diretas Já, e
destacou o brasileiro como um "povo que não se abate, que sabe afastar o
medo e não aceita acolher o ódio".
Já Tiradentes não viu a pátria livre do jugo
português. Foi enforcado no Campo da Lampadosa, no Rio de Janeiro, 30 anos
antes de dom Pedro I proclamar a Independência. Em 2026, serão lembrados os 280
anos do nascimento do mártir, excelente oportunidade, portanto, para se
pesquisar mais sobre a vida dele, dos demais inconfidentes e dos caminhos que
levaram à Inconfidência Mineira.
Os caminhos da história — ela, a mestra de
todos os tempos — se cruzam mesmo séculos depois. Quis o destino que os ideais
de Joaquim José da Silva Xavier e Tancredo de Almeida Neves ecoassem Brasil
afora e se encontrassem no dia 21 de abril. O primeiro, com sua sede de
liberdade, se rebelando contra o domínio de Lisboa, a tirania colonial. O
segundo, homem do seu tempo, pensando um Brasil democrático, de futuro, sem
amarras. Afinal, aprendeu desde criança, no banco da escola, o lema da bandeira
do seu estado: "Libertas quae sera tamen", que, em bom português,
significa "Liberdade ainda que tardia". Herança dos inconfidentes.
Direito de nascermos livres e iguais?
O Povo
Ordem executiva de Donald Trump sobre gênero
contraria direitos universais, gerando repercussões negativas não somente à
população local como também a autoridades estrangeiras. Deputadas brasileiras
tiveram identidades desrespeitadas
Na última semana, as deputadas federais Erika
Hilton e Duda Salabert relataram que suas identidades de gênero foram
negadas ao renovarem os vistos para entrada nos Estados Unidos. Ambas têm todos
os documentos oficiais brasileiros as identificando no feminino, possuíam
vistos anteriores com a identidade correta e buscaram a renovação para
comparecerem a eventos acadêmicos nos EUA.
Os dados registrados no visto respeitam,
conforme reitera a embaixada americana, uma ordem executiva de Donald
Trump. Desrespeitam, entretanto, a existência das deputadas, a validade de
documentos brasileiros e o direito humano de não ser discriminado, o qual é
base de leis e constituições ao redor de todo o mundo.
Ordens executivas, semelhantes aos decretos
brasileiros, são atos do presidente, sem a participação do Congresso, para
organizar o serviço público. Quando extrapolam suas atribuições, podem acabar
barradas judicialmente. Intitulada como uma restauração da "verdade
biológica ao governo federal", a Ordem Executiva 14.168, de 20 de janeiro,
exige que os departamentos federais reconheçam a binariedade de sexos
masculino e feminino como imutável e a utilizem em todos os documentos
federais.
Sete pessoas, por meio da União Americana
pelas Liberdades Civis, estão processando o governo federal devido
problemas ao emitir passaportes. "Todos nós temos direito a documentos de
identidade precisos, e esta política convida ao assédio, à discriminação e à
violência", disse Sruti Swaminathan, da equipe de advogados, à Associated
Press.
A determinação imposta por Trump desconsidera
o que a Organização Mundial da Saúde, a Associação Médica Americana e diversas
congregações de especialistas convergem mediante pesquisas científicas
extensas: as identidades e vivências sexuais e de gênero são melhor
compreendidas como um espectro do que como uma definição excludente e binária.
Desde a posse, o atual presidente dos EUA age
para a extinção de programas de diversidade e a alteração de
políticas federais sobre gênero. Ao mesmo tempo, promotores, organizações civis
e alguns estados ajuizaram dezenas de processos contra ordens executivas,
atuando como freio e contrapeso a Trump. Além da ordem 14.168, o presidente anunciou
pelo menos oito ações que impactam negativamente pessoas transgênero. Duas
delas foram suspensas.
Os ataques ao "gênero" não são de
hoje, tampouco presentes apenas nos EUA. Historicamente, as ofensivas já foram
direcionadas a mulheres, quando da entrada no mercado de trabalho e na
política. Hoje, o foco se vira à população LGBTQIA , especialmente ao
grupo trans.
Seja pela promoção do medo da população geral
quanto grupos específicos, seja pelo amedrontamento destes grupos a partir da
perda de direitos conquistados, vemos e vivemos situações reprováveis geradas
pelo temor a mudanças e adaptações. Poderes governamentais, instituições civis
e grupos sociais precisam, democraticamente, apontar o contraditório
e o repreensível, quando necessário.
Afinal, enquanto sociedade, aprendemos, criamos, avançamos e o novo sempre virá. E, como determina a Declaração Universal dos Direitos Humanos, base da Organização das Nações Unidas e (ao menos em teoria) de todos os Estados que dela fazem parte: "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos".
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