sábado, 24 de maio de 2025

Câmara vs. Supremo - Pedro Serrano

CartaCapital

O Congresso Nacional não pode outorgar para si próprio a condição de guardião máximo da nossa Constituição

A Câmara dos Deputados, na sessão deliberativa realizada em 7 de maio de 2025, decidiu sustar uma ação penal em curso no Supremo Tribunal Federal. O processo foi instaurado após o recebimento de uma denúncia da Procuradoria-Geral da República contra o ex-presidente da República Jair Bolsonaro e outros 33 acusados pelos crimes de organização criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.

O dispositivo adotado para tanto foi o parágrafo 3º do artigo 53 da Constituição, o qual prevê que, recebida a denúncia contra um senador ou ­deputado por crime ocorrido após a diplomação, o STF dará ciência à Casa respectiva, que, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação.

Ocorre que, ao contrário de salvaguardar o exercício da função pública parlamentar, a Câmara pretendia beneficiar terceiros a ela estranhos. Reconhecendo a manobra, o Supremo deliberou no sentido de que a sustação só poderia beneficiar o deputado federal Alexandre ­Ramagem e, ainda, apenas para os crimes que teriam ocorrido após sua diplomação.

Ou seja, foi suspensa a tramitação da ação penal em face do parlamentar e em relação aos crimes de dano qualificado por violência e grave ameaça contra o patrimônio da União e deterioração de bem tombado. Já as acusações por tentativa de golpe de Estado, tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito e organização criminosa continuam tramitando normalmente.

Rememoremos que Bolsonaro proliferou desinformações quanto ao processo eleitoral e às urnas eletrônicas. Além disso, o ex-presidente jamais reconheceu a vitória do presidente Lula nas eleições e estimulou atos antidemocráticos em frente aos quartéis. Não podemos nos esquecer ainda da ruidosa atuação da Polícia Rodoviária Federal com o intuito de impedir o exercício do direito ao voto, dos atos de terrorismo no Aeroporto Internacional de Brasília, em dezembro de 2022, e do fatídico 8 de Janeiro de 2023, ocasião em que símbolos dos poderes constituídos da República foram, sem precedentes na história brasileira, desafiados.

Se antes a palavra “golpe” pudesse, no âmbito das ciências humanas em geral, significar uma reprovabilidade do jargão político, agora é inequívoco que deve ser adotada para representar a prática de um crime contra as instituições democráticas: “golpe de Estado”, com todos os elementos do tipo constantes do artigo ­359-M do Código Penal.

A gradual fragilização dos espaços e dos sentidos da democracia, bem como da relação de pertencimento à sociedade, ocorreu através de específicos artifícios enfraquecedores do pacto civilizatório e das instituições democráticas. Entretanto, para além de mera estratégia política de reprodução e dissipação, o bolsonarismo foi muito além. Esses atos atingiram diretamente o coração do Estado Democrático de Direito.

Nesse cenário, a previsão constante no parágrafo 3º do artigo 53 da Constituição incide para, em benefício da função pública e não da pessoa individualmente considerada, salvaguardar a atividade parlamentar. Não se trata de um privilégio ou de uma benesse individual, mas de uma garantia atrelada à função.

Subvertendo a lógica constitucional, o Congresso Nacional não pode outorgar para si próprio a condição de guardião máximo da Constituição em face de terceiros estranhos à atividade parlamentar. Não se pode, a pretexto de salvaguardar a função pública, deslegitimar a atividade do Supremo perante o mais severo desafio imposto à democracia brasileira em sua história recente.

Se, de um lado, a realização do Estado constitucional implica a preservação da esfera de livre decisão política do legislador, ela obriga a conformidade com a Constituição. É no espaço de tensão entre esses dois princípios que a análise da constitucionalidade da anistia deve ocorrer.

Ao Legislativo não compete a determinação dos limites, bem como a extensão e o alcance, da nossa Constituição, substituindo o STF em seu papel de intérprete final e guardião máximo. As garantias parlamentares não podem ser utilizadas como meio de esvaziamento da atividade jurisdicional suprema. Por todas essas razões, o Supremo, acertadamente, fez prevalecer a vontade da Constituição em face da maioria parlamentar ocasional, a qual não pode, em hipótese alguma, subverter o pacto constitucional. •

Publicado na edição n° 1363 de CartaCapital, em 28 de maio de 2025.

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