segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Mito? Por Denis Lerrer Rosenfield

O Estado de S. Paulo

O problema que se coloca é o de como o bolsonarismo pode sobreviver sem um líder

A imagem do ex-presidente Bolsonaro, em vídeo gravado sobre a violação da tornozeleira eletrônica, é devastadora, fazendo desmoronar sua figura pública. No exercício da Presidência, transmitia a mensagem da masculinidade em motociatas que atravessavam o País, apresentando-se, em casaco de couro, como um mito imbatível, capaz de superar toda e qualquer adversidade. Começou a fraquejar quando a tentativa de golpe se mostrou inviável, dada a intervenção do Alto Comando do Exército, recluindo-se cada vez mais. Após ter se tornado réu, recolheu-se à prisão domiciliar, culminando nessa cena patética de um homem que confessa, abatido, candidamente, para uma agente penitenciária, que violou a tornozeleira eletrônica com um ferro de solda. Ela, inclusive, se dirige a ele como “seu Jair”, sem nenhuma consideração para com sua prerrogativa presidencial.

Mostra essa cena um homem alquebrado, que em nada corresponde à imagem que antanho transmitia. Enseja, isso sim, compaixão. Do ponto de vista estritamente legal, o ministro Alexandre de Moraes tem razão em decretar a sua prisão preventiva, porém poderia ter levado em conta circunstâncias atenuantes, como um eventual surto produzido pela mistura indevida de suas medicações. Seu comportamento não mostra alguém que estivesse arquitetando uma fuga graças a uma vigília preparada por seu filho, 19 horas depois! Não faz sentido. Se há crítica à vigília religiosa, tanto maior deveria ter sido a precaução com o presidente Lula, que teve diariamente vigílias ideológicas, sem nenhuma proibição. O bom senso recomendaria que Bolsonaro permanecesse por suas condições psicológicas e de saúde em prisão domiciliar.

No entanto, desde uma perspectiva política, a questão é outra. Tendo ruído a sua imagem e considerando as condições de sua prisão, incomunicável, não está nem estará em posição de exercer nenhuma liderança. Diria mesmo que não tem nem perfil para isso. Ele se comporta como uma pessoa normal, não como um líder político propriamente dito. Façamos uma comparação histórica, desprovida de juízo moral.

Hitler cresceu na prisão e soube enfrentá-la. Mussolini, em sua ascensão ao poder, superou adversidades. Perto de nós, Lula fez face à prisão com dignidade, com apoio de seus seguidores, cresceu nas dependências da Polícia Federal e virou novamente presidente da República. Bolsonaro, por sua vez, contrasta com essas figuras. Tem uma aversão, aliás justificada, pela prisão, apesar de eventuais ganhos políticos de que poderia usufruir.

O problema que se coloca, então, é o de como o bolsonarismo pode sobreviver sem um líder. O deputado Eduardo Bolsonaro, de seu autoexílio, também patético, declarou, a propósito da escolha de seu irmão Carlos Bolsonaro como candidato a senador por

Santa Catarina, que o bolsonarismo é um “movimento político”. O caso em pauta significa uma intervenção direta nesse Estado, contrariando o governador e lançando impregnações contra duas deputadas, uma federal, Carol de Toni, e outra estadual, Ana Campagnolo. Duas bolsonaristas de estrita observância, que ousaram dizer não a uma tal imposição. Ainda segundo o deputado, deveriam simplesmente obedecer ao “movimento”, dirigido doravante pelo clã familiar, embora não se saiba ao certo quem dirige o clã na atual situação.

Por que, porém, o uso da palavra “movimento”? Significa uma estrutura hierárquica que não admite contestações, sendo que ordens devem ser simplesmente cumpridas. A relação é vertical. No caso de um partido político, diferentemente, há sempre níveis de horizontalidade, com discussões internas, diferentes interesses políticos, líderes divergindo entre si, sem que haja uma estrutura monolítica. Não é o caso de “movimentos”, a exemplo do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, que não admitiam nenhum tipo de crítica interna. Tal tipo de estrutura encontra-se da mesma forma em organizações mafiosas, nas quais a ordem do “padrinho” é incondicionalmente seguida, sob risco de violência física. Basta rever a trilogia Poderoso Chefão.

Acontece, contudo, que a pretensão do deputado Eduardo Bolsonaro é nada mais do que uma pretensão com o intuito de enquadrar o bolsonarismo órfão. Seu outro irmão, o senador Flávio Bolsonaro, dias depois, referendou a sua fala ao declarar que, doravante, seria ele o porta-voz do pai, encarregado de transmitir suas orientações aos diferentes setores estaduais do “movimento”, que deveriam evidentemente ser obedecidas. Ora, imediatamente depois, seu irmão o contestou dizendo que ele não seria o porta-voz exclusivo, visto que ele assumiria igualmente essa função. O clã expõe a disputa interna, rompendo com a ideia mesma de “movimento”, a supor que seus membros estejam dispostos a segui-los, conforme ordens desprovidas de liderança. Isso para não dizer de aliados que nenhum compromisso têm com esse projeto político.

Qual pode bem ser o futuro do bolsonarismo sem líder, submisso às incertezas de um clã que exige apenas obediência incondicional?

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