sábado, 26 de maio de 2012

Fraturas e fortuna:: Míriam Leitão

Toda a discussão do Código Florestal mostrou uma fratura no sistema de representação política do Brasil. A bancada ruralista defendeu pontos que são inaceitáveis pelo momento em que o mundo vive, são contraditórios com o que pensa a maioria da sociedade e não refletem a prática de parte importante do agronegócio. Há um lado moderno e dinâmico do setor que pelo silêncio se deixou representar por defensores de teses obsoletas.

A lei vai ser sancionada toda fraturada. O governo pegou a lei aprovada na Câmara, vetou 12 dispositivos e mudou, fez ajustes ou acrescentou outros 32.

- Na segunda-feira, o Código atual não estará em vigor, haverá uma lei sancionada com buracos e uma MP tentando preencher esses buracos - resume Tasso Azevedo, que foi diretor do Serviço Florestal Brasileiro.

A tramitação será difícil porque é uma MP que tenta consertar uma lei com vetos. Se a MP cair, ficará um monstrengo cheio de falhas em vigor. O governo diz que não há anistia, mas as multas estão suspensas. Diz que se o proprietário não fizer o Cadastro Ambiental Rural e o Plano de Recuperação Ambiental em cinco anos não terá direito a financiamento. Mas o prazo era um ano. Os vetos melhoram o que foi aprovado na Câmara, mas não organizam a confusão nem atualizam o debate no país.

Houve, durante todo o processo, uma fratura do governo com ele mesmo. No início da tramitação no Congresso, o governo não quis ver a dimensão do que estava sendo decidido. Omitiu-se. Um deputado da base, hoje ministro dos Esportes, Aldo Rebelo, comandou de forma equivocada a discussão. Era para encontrar um caminho equilibrado. Ouviu apenas o pior de um dos lados. E defendeu sua proposta com argumentos de deplorável xenofobia. Já o governo ficou na estranha situação de perder de sua própria base nas etapas seguintes. Até chegar na posição de vetar partes do Código aprovado com muitos votos governistas.

Existe uma agricultura moderna que sabe que o desmatamento descontrolado, as práticas agressivas ao solo e a falta de proteção aos rios, morros, nascentes levarão a prejuízos. A terra e a água são os principais insumos da agropecuária. Isso é cristalino. Agora, ficará assim: dependendo do tamanho da propriedade, a mata ciliar a ser respeitada terá uma dimensão. Os rios brasileiros serão protegidos relativamente.

Houve uma fratura no país. O Congresso aprovou um Código que a sociedade não concordou. A mobilização pelas mídias sociais, pelo país afora, unindo pessoas de áreas e pensamentos diferentes, mostrou isso. As questões não respondidas: por que o Congresso não representou a sociedade? Por que a agricultura moderna, dinâmica e atualizada prefere não ter voz?

Ficou de tudo isso um rancor entre as partes. Há bons debates políticos. Esse foi ruim. Os produtores acham que enfrentaram ONGs internacionais e urbanóides sem noção, e se queixam de preconceito contra eles. O outro lado está convencido de que todo produtor é um desmatador em potencial.

O Brasil não pode viver sem o agronegócio. O setor entrega por ano US$ 77 bilhões de saldo comercial. Se, por absurdo, ele não exportasse nenhum dólar durante um ano, o país naufragaria. O Brasil disputa com os EUA a liderança pela exportação de carne bovina, é o segundo maior de soja, o primeiro de açúcar, frango, café. Isso sem falar no alimento nosso de cada dia.

A consciência ambiental se espalha de maneira irreversível no Brasil. As novas gerações não querem viver num país que sacrifica biodiversidade e passa o correntão na mata para ampliar a fronteira agrícola. A tendência vai se intensificar nos anos que virão. Pode-se até contrariar a opinião pública, mas é impossível fazer isso com a natureza. Ela tem suas leis irrevogáveis.

A burocracia dos órgãos públicos é irritante. Um produtor rural que queira fazer tudo direito viverá situações bizarras. O governo é exigente com quem está no caminho da legalidade e é displicente com o infrator. Isso se enfrenta com mais estrutura para o Ibama e o Incra e menor burocracia nos processos do Cadastro Ambiental Rural, do Georreferenciamento e da Licença Ambiental. Para isso não seria necessário mudar o Código Florestal.

O setor rural deixou de lado todos os problemas concretos para tentar desmontar o marco legal. Poderia ter se dedicado a lutar contra a excessiva burocracia da legalização, defender a garantia dos preços mínimos, o aumento da estrutura de estocagem e a eficiência de transporte da produção.

O debate expôs uma fratura de uma parte do país com o tempo presente. As propostas foram feitas com o olho no passado. Os vetos às piores partes não curam essas fraturas. Hoje se tem meio Código e muitos remendos. O governo não liderou o processo, o Congresso não representou o país, os produtores rurais deixaram os mais atrasados falarem pelo setor, não houve conciliação entre meio ambiente protegido e produção eficiente, e ampliou-se a insegurança jurídica. Os vetos apenas evitaram o pior.

Às vésperas da Rio+20, a conferência que ocorre duas décadas depois da histórica Cúpula da Terra, o Brasil informa, com todo esse debate, que ainda não entendeu o tamanho da sua fortuna.

FONTE: O GLOBO

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